“Você tem o pincel, tem suas tintas, pinte o paraíso e depois entre
nele”.
Nikos Kazantzakis (1883-1957)
Poeta, filósofo e escritor grego.
Carroças
saíam carregadas de móveis da sede da Fazenda São José, uma área de cinqüenta e
três alqueires de terra localizada no quilômetro onze da rodovia Campinas-Mogi
Mirim. A poeira subia dentre as rodas de ferro que transportavam camas
rústicas, cadeiras de madeira maciça, uma comprida mesa escura com quatro
gavetas largas, duas de cada lado, e um sofá de couro preto decorado com
desenhos em fios de ouro. Assim que alcançavam a rua, os burros seguiam à
direita e logo depois viravam em direção a uma placa redonda e amarela de latão
cujas letras azuis indicavam o destino final: Casa do Sol, onde, no entardecer,
os últimos raios de luz incidiam rasteiros no chão coberto por cascalhos
rosados e refletiam a cor na parede branca.
Um estreito caminho de terra seria percorrido até chegar a um imponente
portão de ferro emoldurado por dois pilares. Entre eles, o astro-rei cravado no
alto do arco central, irradiando volumosos raios. Seu rosto esférico é decorado
por olhos cerrados e um indecifrável sorriso presente nos cantos da boca. Entre
as grades do portão, as iniciais “HH”, feitas de ferro, indicavam o nome da proprietária:
Hilda Hilst.
Aos trinta e seis anos, Hilda era uma escritora com uma agitada vida na
capital paulista. Promovia festas em sua casa em Sumaré, freqüentada por
artistas e intelectuais, saboreava a comida dos mais requintados restaurantes e
se divertia nas mais badaladas casas noturnas. A boemia deixou de ter sentido
quando, aos trinta, Hilda recebeu um presente do amigo português Carlos Maria
de Araújo que mudaria sua visão de mundo: o livro Lettres au Greco (Cartas a El Greco), autobiografia de Nikos
Kazantzakis, poeta, romancista e pensador grego do século XX.
Nikos estava em Paris quando viu uma linda prostituta e combinou com
ela de sair. Enquanto se barbeava para o encontro, nasceram pequenas bolhas
inflamatórias em seu rosto e ele
acabou não indo porque achou que era um milagre. Subiu até o Monte Athos,
localizado no prolongamento da Península Calcídica, na Grécia, onde vivem
comunidades monásticas. E começou a escrever. Em Cartas a El Greco, Kazantzakis diz que para entender o humano é
preciso se isolar da humanidade. Hilda percebeu que era preciso fazer o mesmo
para “compreender tudo, desaprender e compreender outra vez”.[1]
Próxima a ela
como estava, não via nada por inteiro, nem a si própria, devido às invasões do
cotidiano em sociedade.
“Aprendi a necessidade decisiva que cada um de nós tem de meditar
profundamente, sem mentiras, sem coação, sem censuras. É necessária a distância
para se conhecer melhor o próximo, o outro.”[2]
Apesar de gostar da vida que levava e das sensações do corpo, Hilda não
considerava ter a disciplina e a consciência necessárias para cumprir sua
missão de escritora. Queria que as emoções passassem
todas ela antes de se dedicar a escrever, “com o afinco desesperado como depois
me dediquei.”[3] Deixou
crescer os volumosos cabelos loiro-escuros, antes moldados no clássico corte Chanel, tendo a franja ostentada num
charmoso topete. Puxou os fios para trás e os domou num rabo de cavalo na
altura da nuca, tampando as orelhas. Não vestiria mais os modelos da marca Denner para se cobrir de batas indianas.
Sua transformação não era repentina como poderia parecer, mas a decisão de que
não poderia perder mais tempo foi imediata.
“Houve até quem me tachasse de esnobe, de
sacerdotisa, de monja, de bruxa, tudo isso só porque eu quero pensar no que é
real e urgente.” [4]
Sua mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, emigrante portuguesa que morava na sede
da Fazenda São José, não compreendia a atitude da filha, que lhe pediu três
alqueires para construir sua casa e se dedicar à literatura.
– Vai ficar no mato?
– Vou escrever, mãe. Senão, não vai dar tempo.
Hilda precisava de tempo para escrever trinta e quatro livros a mais do
que os sete que ela já havia publicado e, com eles, receber oito prêmios
literários além do único, o Pen de Poesia, que suas obras haviam conquistado
até aquele momento. Foi incentivada pela escritora modernista Cecília Meirelles
que, após ler um poema escrito por Hilda aos dezoito anos, declarou: “Quem
escreveu isso precisa dizer mais”. O poema dizia: “Somos iguais à morte, ignorados,
puros e bem depois o cansaço brotando nas asas seremos pássaros brancos à
procura de Deus”.
Aos 20 anos Hilda publicou o primeiro livro de poesia, Presságio. Sua mãe se preocupou com o
fato, dizendo que ela “ia ficar com a coisa do pai” – a loucura. Apolônio de
Almeida Prado Hilst era um intelectual de Jaú, interior de São Paulo, que,
apesar de fazendeiro, foi um dos primeiros a defender a idéia de cooperativismo
no Brasil. Ligado ao movimento modernista, escrevia poesias com o pseudônimo
Luiz Bruma e “se fazia perguntas
perigosas”. Apolônio se perguntava: “Como será a alma na loucura?” Ele “deve
ter tido a resposta”[5]:
ficou esquizofrênico aos 33 anos. “Olha os corvos, os corvos estão
chegando eles estão cheios de sangue”, – dizia. Hilda sentia medo de ficar como o pai. Ela escrevia para não
enlouquecer, para ordenar a desordem da loucura, o contrário do que sua mãe
temia. “As mães não querem mais filhos poetas”.
“Tenho
preguiça pelos filhos que vão nascer
teremos que
explicar tantas coisas a tantos deles
as mães não
querem mais filhos poetas
deram o grito
desesperado das mães do mundo”[6]
Dia 24 de
junho de 1966, Hilda se mudava com o namorado, Dante Casarini, para a Casa do
Sol. Passando pelo portão, a carroça
seguiu por um terreno seco, coberto de mato ralo e baixo em trechos esparsos.
Cinco coqueiros de troncos finos e folhas queimadas esvoaçavam no sentido do
vento. Uma figueira com mais de vinte metros de altura chamava a atenção para o
lado direito. Como se fosse a mão da árvore a embalar o corpo, está preso em um
de seus galhos, por correntes compridas, um balanço sem encosto que acomodou
alguns brincalhões em seu rígido assento. Para frente, para trás, para frente,
para trás. O ar sopra suave no ouvido, devido ao movimento. Os cabelos vão e vêm,
os joelhos se dobram e se esticam. A Casa está à esquerda. Dá para ver uma
chaminé no telhado. Ela parece mais próxima, mais distante, mais próxima. E
some, caso se feche os olhos para perceber apenas a claridade vermelha do sol
que se espalha entre os raros espaços da densa sombra da árvore. Vermelho,
preto, vermelho, preto. Se tirar os pés do chão e agarrar as mãos nas correntes
laterais, conseguirá deixar de pensar. E irá apenas sentir.
A árvore
centenária de copa larga e densa exibia suas raízes grossas fincadas ao solo e
dava boas vindas aos primeiros moradores daquele lugar que, finalmente,
chegaram a uma casa branca de janelas altas. Seis pilares sustentam a cobertura
da varanda, decorada por dois bancos longos de madeira. Logo na entrada, um lustre
de vidro liso azul-marinho pende em uma corrente na cúpula que antecede a
porta. Seu bico dourado aponta para as cabeças que por ali passam. A maçaneta
fria e redonda gira e a porta em forma de arco é empurrada para trás. À frente,
outra porta leva a um pátio interno. Aos lados, um só ambiente comprido e
horizontal compreende as salas de estar, de jantar e o escritório, separado dos
outros cômodos por uma lareira central. O piso é de lajotas e o teto alto,
forrado por tábuas verticais que aumentam a sensação de profundidade do
corredor da ala esquerda da Casa: ao lado do escritório, banheiro e quarto de
Hilda. Do outro lado, na ala direita, a cozinha e, ao fundo, outros quartos.
O prédio lembra um mosteiro
espanhol: todas as portas são altas e em formato de arcos e os cômodos
convergem para o pátio interno, o que remete à idéia do isolamento procurada
por Kazantzakis ao subir no Monte Athos. Assim como fazem os monges, Hilda
buscava um encontro. Com Deus, com o amor, consigo. A solidão era necessária
para “viver muito mais para as coisas de dentro do que para as coisas de fora”.[7]
Dentro da casa, os objetos eram nus e solitários: o chão sem o tapete, a mesa
sem a toalha, as janelas sem as cortinas. Tudo ficava exposto aos copos, aos
pratos, à poeira, ao toque das mãos e dos pés. Tudo deveria ser percebido por
inteiro.
Apesar de as janelas serem altas, a luz do sol entrava tímida nos
espaços que se abriam pelas vidraças até seu último feixe deixasse de apontar e
a Casa do Sol ficasse no breu. A energia elétrica vinda de Jaguariúna chegava
fraca, por isso Dante comprou trinta lampiões e encomendou uma lata com
torneira para guardar o querosene. Todos os dias, às cinco e meia da tarde,
enchia-os, espalhava-os pela casa e fincava alguns numa roda larga de carroça
pendurada no teto da sala, servindo de lustre. A água do chuveiro era aquecida
por meio de um botijão de gás que ficava do lado de fora. Para outras
utilidades, era puxada de um poço com balde. Os champanhes franceses que saíam
das caixas eram mantidos refrigerados em uma bacia recheada de generosas barras
de gelo. Não havia televisão nem rádio. Quando anoitecia, a meia-luz dos
lampiões trazia um ar romântico, mas dificultoso, para Hilda fazer aquilo de
que mais gostava: ler e escrever.
Numa noite de 1966, a casa foi espantosamente iluminada. Hilda e o
namorado estavam na sala quando ela colocou um lampião ao seu lado para que
pudesse enxergar, ainda que com dificuldade, o conteúdo do livro que tinha em
mãos enquanto goles de uísque desciam pela garganta de Dante. Hilda estava
submersa quando, de repente, as palavras ficaram completamente nítidas. Todos
objetos foram iluminados por uma imensa claridade refletida nas paredes. Uma
luz esbranquiçada vinha do jardim e invadia a sala. Os dois acreditaram que era
impossível ser o farol de um carro, devido à potência da luminosidade,
semelhante à transmitida por holofotes cinematográficos. Não se escutava o
barulho de motores, nem o mínimo ruído. Correram juntos para a comprida e nua
janela do canto esquerdo da sala. O silêncio era ensurdecedor. Do outro lado do
vidro, uma esfera brilhava a poucos metros de distância. Os rostos do casal,
antes claros, se camuflaram gradativamente à medida que o foco de luz se
retraía até desaparecer por completo, sem deixar vestígio na escuridão.
Este foi o primeiro de diversos fatos misteriosos que viriam a
acontecer na Casa do Sol. Depois de passado o susto, os acontecimentos
inusitados traziam alegria para Hilda. Estava
sempre envolvida por um bom humor incrível que surpreendia o namorado Dante. Ela
acordava sorrindo.
Quando a
conheceu, Dante era funcionário federal do Ministério da Fazenda no Rio de
Janeiro, onde havia morado por dez anos. Estava de férias em São Paulo, em
1963, comprando sapatos em uma loja da rua Augusta, quando uma mulher de
cabelos loiro-escuros, com uma charmosa mecha mais clara caindo-lhe sobre a
testa, olhava a vitrine. A raiz da franja se encontrava ao meio da testa em um
fino bico, formando um coração. As sobrancelhas curvadas nas extremidades
levantavam as pálpebras ligeiramente caídas. O olhar, como a maioria dos seus
outros gestos, era suave e demorado. Os olhos verdes acompanhavam as cenas em
movimentos lentos e paradas intensas. As maçãs do rosto se erguiam com
graciosidade enquanto seus lábios carnudos se esticavam de felicidade. Havia
algo de sarcástico naquele sorriso. Algo de ironia e de demasiada segurança.
Era a liberdade que resplandecia em todos os seus poros. Ela não estava
interessada em comprar. Aproximou-se de Dante e declarou com delicadeza:
– Você é o homem mais lindo que eu já vi.
Hilda havia namorado os galãs de Hollywood
como Jeff Chandler, Tony Curtis e o cantor e ator Dean Martin, homem de pele
morena e sorriso debochado que conheceu durante a viagem de seis meses pela
Europa em 1957. Embarcou para Paris usando um vestido preto, broches florais e
colar e brincos de pérolas. A ponta arredondada de seu queixo dava-lhe um ar
sensual e seu olhar possuía um misto de desejo e nostalgia. As maçãs do rosto,
salientes, demonstravam o vigor do seu sorriso. Os lábios se preenchiam de luz
e mostravam-se todos os seus dentes vibrantes, sorriso pelo qual Dean se
apaixonou. Apesar de ele cantar num ritmo extremamente suave em seu ouvido You make me feel so young durante os
vinte dias de namoro, ela não gostava dos holofotes que os cercavam em todos os
lugares. Achava-o simpático, mas bebia muito, até mesmo antes de subir nos
palcos. Irônico, Dean cantava a música pela metade e dizia para o público: “Se vocês querem a música direitinho, vão comprar o disco”.
Ele havia desfeito a dupla com o comediante Jerry Lewis, com quem participou de
musicais cômicos naquela década, e tinha dificuldades em continuar sua carreira
junto aos estúdios, que o viam como um estepe de Lewis.
Dean Martin estava em Paris para
participar do filme Os deuses vencidos,
de cujo elenco Marlon Brando fazia parte no papel de oficial nazista. Brando
era o símbolo do homem viril americano. As fãs viam nele o motociclista rebelde
que representou em O Selvagem (1954).
Dean acreditava que contracenar com ele era uma grande oportunidade de fazer
sua carreira decolar novamente.[8] E
para Hilda, o fato dos dois contracenarem era uma oportunidade de conhecer o
astro e, quem sabe, viver um romance. Poderia ver o azul-turquesa de seus
olhos, imperceptível na coloração branca e preta dos filmes. Dean se negou a
apresentá-lo, dizendo que naturalmente o iria trocar por Brando, mas deixou
escapar o lugar onde estava hospedado: Hotel Rafael.
Hilda foi até o bar Cavalados esperar pela hora da tentativa de falar
com ele. Havia recebido a informação de que deveria procurá-lo à noite. Como
ainda era final de tarde, o bar não havia começado a funcionar. Os garçons
colocaram uma mesinha na calçada e ela pediu um uísque. Logo depois chegou um homem
de estranhas feições e ares mal-humorados. Sentou-se na mesa ao lado e pediu a
mesma bebida. Olhou-a com insistência por vinte incomodantes minutos. Era um
olhar desagradável, estava a aborrecendo. Num gesto inesperado, o desconhecido
galanteador espatifou o copo de uísque na mesa, no momento em que o amigo de
Hilda, Body Costa, se aproximava. Os garçons correram para lá. Body sentou-se
vagarosamente ao seu lado dizendo:
– Hilda, você não sabe quem é esse homem. Ele está olhando para você há
muito tempo?
– Vinte minutos
– É o homem mais rico do mundo, o Howard Hughes. Como é que você não
deu bola?
– Mas eu não sabia que era ele! Chame-o aqui na mesa!
– Não posso, de jeito nenhum.
Howard foi embora em um imenso Rolls-Royce.
Restava à ela nada mais que Marlon Brando. Decidida, saiu à procura do ator,
acompanhada da amiga Marina De Vicenzi. Era perto de onze horas da noite quando
entrou no Hotel Rafael e subornou o concierge, que não queria deixá-las seguir em
frente. Com o dinheiro nas mãos, o funcionário pediu para que um garoto as
levasse até o desejado quarto. Hilda bateu à porta. Quando ela se abriu, do
outro lado estava o ator francês Christian Marquand.
– Será que eu poderia falar com o monsieur Brando?
Brando se aproximou usando um robe de seda escura cor de vinho,
contrastando com seus cabelos loiros claros oxigenados e uma echarpe envolvida no pescoço. Hilda
pensou: “Meu Deus, e agora, o que vou falar para ele? Eu tenho de falar alguma
coisa, quero entrar e ver se posso dormir com ele”. Brando olhou-a e perguntou
em inglês:
– O que é? Você pensa que só porque é uma mulher bonita pode acordar um
homem a esta hora?
– Desculpe-me, sou uma jornalista brasileira.
– Não dou a mínima para o seu jornal.
Era evidente que Hilda não era uma jornalista a trabalho. Estava
vestida com roupa da grife Cristian Dior e uma tiara de brilhante escorria-lhe
na testa. Marina fazia sinais para Brando, indicando que a amiga era louca. Ele
riu e finalmente concordou:
– Bem, pode falar.
– O que o senhor acha de Franz Kafka? Quer me dar umas declarações?
– Vou dormir agora, não vou pensar no sr. Kafka.
Hilda ficou desesperada e insistiu sem resultado:
– Não posso entrar nem um pouquinho para conversar?
– Não.
“Não”. Hilda também havia escutado muitos sins: do poeta Vinícius de
Moraes, de quem foi namorada, do escritor Carlos Drummond de Andrade, que a
cortejou com um poema esperançoso:
“Abro
a folha da manhã
Por
entre espécies grã-finas
Emerge
de musselinas
Hilda,
estrela Aldebarã.
Tanto
vestido enfeitado
Cobre
e recobre de vez
Sua
preclara nudez
Me
sinto mui perturbado.
Hilda
girando boates
Hilda
fazendo chacrinha
Hilda
dos outros, não minha
Coração
que tanto bates.
Mas
chega o Natal
e
chama a ordem Hilda.
Não
vez que nesses teus giroflês
Esqueces
quem tanto te ama?
Então
Hilda, que é sab(ilda)
Manda
sua arma secreta:
um
beijo em morse ao poeta.
Mas
não me tapeias, Hilda.
Esclareçamos
o assunto.
Nada
de beijo postal
No
Distrito Federal
o
beijo é na boca e junto”.
O homem que estava à sua
frente na loja de sapatos da Rua Augusta, em São Paulo não precisaria lhe
recitar poemas, ser o homem mais rico do mundo ou um astro do cinema desejado
por todas as mulheres. Para ela, era o melhor. Alto, moreno, rosto anguloso,
olhar preciso. Hilda cheirava ao perfume L’expression de Jacques Fath.
Dante não perdeu a oportunidade de dar seu telefone. Mais tarde, ela ligou em
sua casa perguntando o endereço. Mandou o motorista buscá-lo na mesma noite.
Sempre fazia de tudo para ter as pessoas e as coisas que queria por perto.
“Posso
dizer que já tive todas as emoções que desejei ter. Se eu me apaixonava por uma
idéia ou por uma pessoa, fazia com que essas coisas ficassem perto de mim de
qualquer forma. Eu não abdicava nunca do que desejava e queria.”[9]
Quando
Dante chegou, encontrou um banquete feito para ele. O rosto e corpo de Hilda
eram iluminados por velas. Dante ficou surpreso. Não sabia que sua vida ia
mudar a partir daquele momento.
Os
dois saíam todas as noites, estavam apaixonados. Dante era admirador de
touradas espanholas e tinha um olhar firme. Hilda gostava de homens fortes e
possuidores de certa frieza. Citava Simone de Beauvoir, dizendo que o homem
deveria ser, de alguma forma, superior à mulher, e divertia-se quando observava
que “homem que gosta de mulher por cima é afrescalhado”. Namorou João Ricardo Penteado, homem dez anos mais novo que, além
de ser jornalista, também lutava boxe. João Ricardo foi o homem que Hilda mais
amou. Viria a visitá-la novamente quando ela estava com sessenta anos.
Percebeu, na ocasião, que ele estava nervoso e ofereceu-lhe uma bebida. Ele
tremia muito e ela continuava achando-o lindo. A escritora lembrava-se do
quanto era excitante ir para perto do ringue ver o suor escorrer pelo corpo
forte e moreno enquanto treinava golpes precisos e intensos. Às vezes, a
violência ultrapassava a arena, como ocorreu com outro namorado seu, que deu um
tiro na porta de vidro do Edifício Bocaína quando ela morava no Jardim
Paulista, em São Paulo. Os moradores do prédio escutaram quando o homem gritou
alguma coisa, disparou a arma e foi embora deixando o chão cheio de cacos.
Hilda ganhava mais do que estilhaços de vidro. Enlouquecidos, os homens a
presenteavam com jóias, casacos de pele, Mercedes-Benz e se desfaziam de seus
planos para viver com ela.
No trabalho, Dante pediu transferência para São Paulo e passou a morar
com Hilda em uma casa decorada com peças antigas, onde hoje fica o viaduto
Sumaré. Recebiam a visita de artistas e intelectuais como Raul Cortez, Eva
Wilma, Lupe Cotrim, Olga Savary, Mira Schaendel, Teresa Austragésilo, Jô
Soares, Cassiano Gabus Mendes, Rofran Fernandes. Iam a restaurantes, boates,
promoviam festas regadas a champanhe francês. Dante sentia como se estivesse
nas badalações parisienses, pelo requinte e agitação.
Agora estava em uma fazenda, ouvindo os grilos cantarem ao anoitecer.
Havia pedido demissão do emprego para se isolar com ela. Considerava aquela
decisão uma aventura apaixonante. Ele usava calças jeans, camisão aberto e uma
larga corrente preta com crucifixo dourado pendente próximo ao umbigo. Estava
completamente envolvido e disponível a Hilda, fascinado por sua
intelectualidade. Não dizia coisas desnecessárias, as conversas eram norteadas
pela inteligência. Seu bom humor também era apaixonante. O largo sorriso que
ela abria todos os dias ao despertar ficaria gravado na memória de Dante para
sempre, fazendo-o sentir a intensidade vida. Assim, ele pôde compreender o
escritor irlandês Oscar Wilde: “Viver
é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”.
Dante acordava antes do amanhecer e deixava bilhetes na mesa da cozinha
para Hilda avisando se ia ao centro, ao banco ou cuidar da fazenda. Enquanto
fazia as atividades práticas, ela escrevia. Pela falta de algo criativo a
fazer, ele decidiu se aventurar entre madeiras de cedro, iniciando o trabalho
de escultura em traços versáteis e rudimentares. O tronco era trazido por
burros a ele acorrentados. Posicionava-o atravessado entre duas compridas
bancadas dentro da antiga cocheira de cavalos. Era um espaço rústico, fechado
por porteiras baixas em que os animais costumavam ficar com os alongados
pescoços por cima.
Os temas religiosos eram os mais recorrentes. A maioria dos personagens
talhados por Dante possuía posturas santificadas, como a que decora o lado
esquerdo do pátio interno da Casa do Sol: uma figura masculina de mais de dois
metros de altura, em cuja face foram esculpidos um nariz fino e comprido e
cabelos na altura do queixo. O homem mantém as mãos cruzadas no peito, enquanto
os olhos são voltados para os pés, onde uma segunda figura está ajoelhada, com
a mão esquerda apoiada em suas longas pernas num gesto de paixão e súplica.
Nem todas as
esculturas da Casa foram produzidas por Dante, como os dois sisudos monges
carmelitas de cabelos cortados em forma de cuia e orelhas altas. Um em cada
lado do batente da porta de entrada, recepcionavam os primeiros visitantes,
pertencentes à alta sociedade paulistana, que chegavam em carros importados ou
desembarcavam na Estação Paulista de trem, onde sempre havia alguém a
esperá-los para conduzi-los à Casa do Sol. Enviavam cartas para combinar o dia
da visita para a caixa postal do correio central de Campinas.
Os amigos
paulistanos não acreditavam que Hilda agüentaria ficar longe das badaladas
festas por muito tempo. No início pensavam que ela estava “dando uma de
fazendeira”. Logo perceberam estar enganados e a amizade começou a perder o
interesse: Hilda queria ler, ler, ler, escrever, escrever, escrever. Não ia
mais a São Paulo e parou de se arrumar. Acordava de manhã, prendia o cabelo
para trás e colocava uma roupa larga. Suspendeu as encomendas de champanhe, mas
ainda receberia a visita de um fantasma.
Hilda estava sentada na sala quando viu um homem de terno branco, do
tamanho da porta, entrar: tinha por volta de 1,90 m de altura. Ela se levantou
para recepcioná-lo. O visitante disse rindo: “Enfim, cheguei”. Ele carregava
uma valise preta na mão e vestia um chapéu gelot,
moda nos anos 40. Parecia um embaixador. Quis se aproximar para
cumprimentá-lo, mas o homem desapareceu. Esse não seria o único contato que
considerou ter com o mundo espiritual.
Dia 24 de
Setembro de 1966, dez horas da manhã.
Dante e Hilda
iam para o centro de Campinas em um Mercedez-Benz cinza-grafite. Ela estava
muito triste porque seu pai não estava bem de saúde, internado no hospital
psiquiátrico Bierrenbach de Castro. De repente, uma imensa alegria lhe invadiu
o peito, sem motivo aparente. Olhou para uma colina ao lado da estrada e viu
Apolônio Hilst em pé, parado, com um chapéu e vestido de branco.
– Dante, imagine que loucura, acabei de ver o meu pai na estrada.
Imediatamente,
Hilda sentou necessidade de... açúcar. Quando chegaram ao centro da cidade,
Dante comprou muitos doces, que ela degustou com prazer.
Dia 24 de
Setembro de 1966, às dez horas da manhã, Apolônio estava morrendo.
A primeira vez
que o viu, a filha tinha três anos e morava com sua mãe em Santos, na Rua
Vicente de Carvalho, número 32. Hildinha tinha os cabelos loiros muito claros,
cortados em forma de cuia, o que fazia ressaltar seu rosto cheio e a bochecha
saliente. O pai chegou e lhe deu um cavalinho de pau. Ela ficou olhando o tempo
todo para cima, era um homem era muito alto.[10]
Voltou a encontrá-lo aos 16 anos, quando ele pediu para lhe chamar. Disse ao
irmão Luiz Antonio Hilst, com quem morava na fazenda da família em Jaú, que
queria conhecer a filha. Quando Hilda chegou no portão, lhe pediu a carteira de
identidade. Ela tirou o documento da bolsa e entregou ao pai. Ele deixou-a
entrar.
– Alguém foi recebê-la na entrada? – questionou
Apolônio aos seus familiares assim que Hilda entrou na casa.
– Você foi
receber. – respondeu seu irmão Luiz Antonio.
Apolônio ficou
nervoso com as irmãs, por não terem recepcionado sua filha. Hilda ficou
ruborizada de vergonha. Com ela, Apolônio não tinha ataques de nervosismo.
Mandava que lhe servissem café nos três dias que passou na fazenda. Para
Apolônio, aquela não era a Hildinha, apesar da carteira de identidade. Era
Bedecilda, sua mulher, quem estava ali. Às vezes pegava suas longínquas e
delicadas mãos para pedir por três noites de amor.
– Só três
noites de amor, só três noites de amor – insistia.
Ela ficava
muito atrapalhada, sem jeito, morta de vergonha.[11]
Antes de
Apolônio ser internado no hospital psiquiátrico, Hilda tinha notícias dele
apenas pelas cartas que seu tio Luiz lhe enviava. Ficou sabendo que Apolônio
deixou crescer uma grande barba, que não lhe caía mal. Vestia-se com cuidado e
com gosto. Em casa, ficava de pijama e chinelos e passava a maior parte do dia
deitado. Às vezes saía pela cidade, como no dia em que foi a um longo comício
político de um brigadeiro. Não admitia que ninguém o acompanhasse, o vigiasse.
Um empregado da família o seguia de longe, sem que percebesse. Assistiu a todo
o comício vigiando Apolônio, que se portou perfeitamente bem.
Quando estava
em casa, tinha fortes ataques de cólera, quase todos os dias, sempre de
madrugada ou pela manhã, ao acordar. Nesses momentos, se lembrava de
acontecimentos do passado. Gritava, xingava. Seus familiares já estavam
acostumados àquela rotina. Moravam um pouco afastados, por isso não tinham
inconvenientes com os vizinhos. Inconveniente era a visita de Hilda. Seu tio
insistia, nas cartas que lhe enviava, para que não fosse ver o pai.
Apolônio
queria que Hilda deixasse os estudos, saísse de São Paulo, se casasse. Por isso, era melhor continuar se correspondendo
apenas por cartas, pois era muito “mandão”.[12]
Ele escrevia para a filha, mas as cartas voltavam sem parar: colocava endereços
imaginários ou vagos. Queria ver Hildinha, se preocupava com ela. “Onde ela está? Porque ela não vem?” Escreveu
para seu antigo advogado, Dr. José Augusto, para que a trouxesse de volta. Mas
ele não trouxe. Mostravam-lhe as fotos dela nos jornais, mas não, essa não era
a sua filha, ele não queria olhar, não queria comentar. Acreditava que era tudo
forjado com o intuito de convencê-lo de uma falsa realidade.[13]
Hilda não
tinha coragem para visitá-lo enquanto esteve internado no sanatório Bierrenbach
de Castro, em Campinas. Pedia a Dante que fosse em seu lugar. Apolônio falava
pouco. Apesar das frases desconexas, dizia com exatidão:
– A minha filha é uma pessoa muito fantasiosa.
A última vez
que Hilda acreditou ter entrado em contato com o pai foi quando ele já havia
falecido. Ela lia um artigo em um jornal sobre Franz Kafka, um dos seus
escritores preferidos. Quando pôs a mão em cima do texto, seu corpo se
enrijeceu. “Será que tem alguém querendo falar comigo?” – pensou. Fechou os
olhos para olhar para dentro e leu na escuridão: “Loucura”.
– É você, meu
pai? – perguntou para o silêncio – O que está acontecendo agora?
Hilda escutou
uma resposta.
– Vida na
Terra, experiência inútil e dolorosa.
– Pai, será
que algum dia eu vou conseguir ser alguém na literatura, ser entendida por
alguém?
– Matéria.
Muito mais matéria.
– E a alma,
continua louca, pai?
– Hipótese
absurda.[14]
Com dor e fantasia, Hilda prestou-lhe uma
homenagem. Escreveu Odes maiores ao
pai e mandou cravar o último verso na lápide de seu túmulo:
“E ainda que as janelas se fechem, meu pai,
é certo que amanhece”.
[1] CADERNOS
DE LITERATURA BRASILEIRA. Hilda Hilst. São Paulo: Instituto Moreira
Sales n.8, out 1999, p.31.
[2] Id.,
Ibid.
[3] WERNECK,
Humberto. Hilda se despede da seriedade. Jornal do
Brasil. Rio de Janeiro, 17 fev 1990
[4] RIBEIRO, Léo Gilson. As múltiplas seduções de Hilda
Hilst. Jornal da Tarde. São Paulo, 18 abr 1977
[5] VASCONCELOS,
Ana Lúcia. Hilda
Hilst: a poesia arrumada ao caos. Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 jul 1977, Folha Ilustrada.
[6] Id.,
Ibid.
[7] GRANDO, Cristiane. Hilda Hilst abandona a vida dissonante para compreender a música da
morte. Revista Garatuja,
mar 2004, p.6
[8] DVD Show. Website.Disponível em: http://www.dvdshow.com.br/padrao.php?page=atores_&listar=
618&od=1 Acesso em:23 set 2005
[9] MASCARO,
Sônia Amorim. Hilda Hilst. Jornal da Tarde. São Paulo, 21 jun 1986
[10]
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999, p26.
[11] Id.
Ibid. p26.
[14]
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999,. p.40.