Cap. 4 - Deus



“Só a percepção grosseira atribui tudo ao objeto quando tudo está no espírito”.
Marcel Proustescritor francês.
(1871-1922)

Existe a lenda de que se enterraram potes de moedas de ouro e estatuetas de santos sem as cabeças, virados com os pés para cima, nas terras da antiga fazenda cafeeira São José, onde se localiza a Casa do Sol. A mãe de Hilda comprou-a em 1942 do empresário e bibliófilo paulista José Mindlin. Ao perceber que a terra estava exaurida, resolveu criar gado com a ajuda dos colonos, mas não obteve sucesso. Os colonos constituíam um vilarejo nos fundos da propriedade. Suas moradas eram tipicamente caipiras, caiadas de amarelo, rosa e azul, construídas com tijolos maciços de barro e argila, portas de madeira e jardim decorado com delicadas flores.
O vilarejo possuía uma vendinha e um bar, que tinha como principal finalidade receber os moradores em seus bancos altos para rodadas de aguardente. O mais famoso cliente era Dito Braga. Homem alto e magro, ressequido, não saía sem uma arma: revólver ou faca. Sentia ciúme doentio de sua mulher, Izaura, possuidora de rara beleza, apesar da falta de vaidade: não cortava os cabelos e usava roupas que ocultavam suas curvas, atiçando a imaginação dos homens que a olhavam sem pudor. Quando percebia que Izaura despertava desejos, Dito perdia o controle e sacava sua arma. Apontava para a cabeça da mulher e apertava o gatilho. A bala não saía. Virava o revólver para o lado e disparava para o nada. Ouvia-se o estouro seco. O boato que corria na Fazenda São José era o de que Izaura tinha o “corpo fechado”.
Dito Braga também era ciumento com as filhas. Tinham que fugir de casa se quisessem arrumar um marido. Não podiam ver televisão, os pais diziam que era “coisa do demônio”. Um dos filhos tentava se estrangular amarrando seu pescoço em uma corda presa em uma jaqueira que ficava no fundo da casa. Sempre que ouvia um estremecer de galhos, a família Braga corria para o quintal. Enquanto um segurava as pernas do garoto para cima, outro rompia a corda para evitar o suicídio.
Entre as irmãs, Fátima era a mais austera. Andava com a gola da camisa até o queixo. Anos mais tarde, iria se tornar prostituta. Hilda teve informações de que Fátima estava no centro de Campinas pedindo esmola e chamou-a para trabalhar na Casa do Sol, nos afazeres domésticos. Ela sentia grande vontade de resolver e incorporar os problemas das pessoas.

“Às vezes, olhando, conversando com os outros, sinto que são mais fortes. Se vejo uma pessoa velha, encarquilhada, paupérrima, esguedelhada, já quero fazer alguma coisa. As pessoas dizem: mas o que é isso, vai começar a levar as senhoras velhas para casa, os meninos, os cachorros não dá, esquece. Sabe, sinto um desconforto vivencial diante do mundo e dos problemas dos outros.”[1]

A família Braga ajudava nos serviços da Casa. Dito era jardineiro, Izaura cozinheira. Fátima dormia no quarto do lado de trás do pátio interno, onde começou a levar homens para fazer programas. Por isso, foi demitida do emprego na Casa.
Dito Braga faleceu em 2002. Até então, continuou carregando suas armas e freqüentando o mesmo bar. Sua nova distração era pescar no pequeno lago que foi construído a partir de um córrego, após a realização do loteamento da fazenda, que iria se transformar no condomínio residencial Parque Shangri-lá, em 1973.
Quando os lotes começaram a serem divididos, o caseiro, Ricardo Cameron, cercou todo o terreno em volta da Casa do Sol.  Sabia usar o seu corpo magro e baixinho como uma eficiente ferramenta. Levava mourões de cerca no estreito ombro, mantendo a coluna curvada, sacrificada pelo peso que se desafiava a carregar, enquanto um cigarro pendia no canto de sua boca. A testa de Cameron era ossuda, cabelos brancos, sobrancelhas grisalhas, olhar de “cowboy de faroeste”. Se alguém se aproximava oferecendo apoio, negava a ajuda balbuciando alguma coisa com seu sotaque galego e fanho. Cameron tinha um jeito de falar atrapalhado porque seu rosto foi afundado pela traiçoeira força da pata de um boi, num coice sofrido na fazenda onde trabalhava antes.
Com a realização do loteamento da Fazenda São José, Hilda deu parte dos terrenos do vilarejo para os colonos. Assim, poderiam continuar morando ali por várias gerações. Ela teve um meio de sustentar a Casa do Sol por meio da venda dos lotes, dividindo o lucro com o seu irmão Ruy Vaz Cardoso. A venda dos livros de Hilda não passava de três mil exemplares: seis meses após o lançamento, ganhava entre cem e duzentos reais referentes aos direitos autorais. As editoras produziam apenas o suficiente para o lançamento e se desligavam da distribuição para os livreiros. Ela se perguntava se os seus versos estavam destinados à total solidão e lembrava-se do destino dos outros poetas e escritores, cujos destinos foram o esquecimento. Pensava em Kafka, que ela achava genial e, no entanto, só depois de morto foi considerado um grande escritor. Mas também pensava em Goethe “Poder, luxo prazer”. E Rilke, “frivolidade, facilidades”.
          Hilda se lamentava pela falta de comentários sobre Qadós, a obra de que mais se orgulhava por ter escrito. Não conhecia texto mais belo e rigoroso que aquele. Agradecia aos seus guias pelo resultado do trabalho.
Às vezes sentia que não ia conseguir escrever mais. Em alguns momentos, nada lhe vinha à cabeça e parecia ser impossível contar o que queria. Pensava que ninguém se importava com a literatura e que a política e o poder eram as únicas coisas que entusiasmavam o mudo.
Levantou os braços no meio do pátio interno, se queixando dos poucos leitores que havia conquistado. Dizia que um dos culpados era o seu mapa astral: “Saturno na casa 12”.
– Isso é karma! É meu karma! – gritava inconformada.
A empregada Dona Maricota observou, “corrigindo” a escritora:
– Não é “carma”, dona Hilda, é calma, calma!
Hilda mantinha a Casa do Sol com a renda que recebia da fazenda de seu pai, em Jaú. Os moradores vendiam esporadicamente o que produziam. O dinheiro que um ganhava pertencia a todos. As dificuldades financeiras apareceram quando o dinheiro que Hilda recebia de seu pai cessou. Houve um período em que Dante foi trabalhar em São Paulo, outro em que Mora Fuentes vendeu um terreno em Águas de São Pedro, que era da mãe. Quando gastavam a última nota, ficavam desesperados e se perguntavam: “Meu Deus, como é que a gente vai comer?”. Só procuravam um modo de conseguir dinheiro quando ele acabava.
Em um desses momentos de dificuldades financeiras, um homem bateu palmas no portão: queria comprar a grama da fazenda para pôr no canteiro central da rodovia próxima, Campinas-Mogi Mirim, que estava sendo duplicada: precisava-se de quarenta alqueires de grama. O caseiro, Cameron, estava passando pelo acostamento durante as obras, quando um dos tratores derrubou um pedaço de madeira que caiu certeiro em seu rosto. A equipe da construtora o levou para o hospital. Seu nariz ficou curvilíneo, com duas pontas levantadas ao longo de seu comprimento, o que aumentou ainda mais o seu embaraço ao falar.
   Apesar do acidente, a duplicação da estrada teve como ponto positivo a venda da grama, um negócio que rendeu dinheiro suficiente para alimentar por um ano os habitantes da Casa do Sol entre eles a nova moradora Olga Bilenky, namorada de Mora Fuentes. No dia que ia para a Casa, Olga se trancou no banheiro de seu apartamento, na Alameda Lorena, Jardim Paulistano, São Paulo. Abriu o chuveiro e esperou que sua mãe saísse para fazer compras, imaginando que ela estaria, enquanto isso, lavando os cachos vermelhos que emolduravam seu rosto pálido e anguloso. Como de costume, demorava horas para ensaboar e hidratar os compridos cabelos. Assim que ouviu a porta bater, Olga aguardou por um tempo, fechou a torneira e apressada vestiu uma túnica. Mora Fuentes a esperava dentro do carro. Seus cabelos estavam na altura do ombro e barba contornava o seu rosto. Ficou parado em um posto de gasolina na esquina da alameda onde Olga morava. Sentiam-se apaixonados, mas a família Bilenky, de tradição judia, queria que ela se casasse com alguém de sua religião. Olga saiu do apartamento com uma mala de roupas, foi até o posto e seguiu com o namorado até Campinas, na Casa do Sol.
Ela visitou a Casa pela primeira vez quando tinha dezoito anos. Chegou de carona em um caminhão com Fulvia, filha de uma amiga de Hilda. Achou o clima da Casa fantástico: a mandala na parede e a túnica cinza que Hilda usava combinavam com o seu estilo hippie. Olga viajou ao Estado de Israel em 1975, quando redescobriu a mandala, símbolo usado como um dos primeiros registros da existência humana e divina. Acredita-se que o ato de pintar a mandala faça com que o intelecto seja desligado e a aura se expanda. Cada forma expressa um significado: o círculo representa o divino, o quadrado, o mundo material e o triângulo, o modo de vê-lo e cada cor tem uma função.[2] A mandala da Casa do Sol ocupava quase uma parede inteira em seu comprimento, pintada de vermelho, preto e branco, cores que simbolizam respectivamente a idealização, perfeição, paz e harmonia. Olga dedicou seu trabalho como artista plástica a esses símbolos e cores com a técnica mista de nanquim sobre papel.
Sete anos depois da primeira visita, Olga estava de volta à Casa, dessa vez, trazida pelo namorado Mora Fuentes. Hilda olhou os cabelos da moça. Vermelho intenso. Olga tinha trinta anos a menos que ela, achava-a charmosa e segura de si. Admirava sua maturidade e inteligência. Ela sempre fora fascinada pelos escritores. Ouviu falar de Hilda nas rodas de intelectuais que seu pai promovia. Nos primeiros dias em que estava morando na Casa, ficava inibida com a presença da anfitriã e sentia pavor em sair do quarto. Hilda ficou irritada com a situação. Ia perceber que as pessoas se sentiam intimidadas com sua presença quando fez parte da equipe de “Artistas Residentes” da Unicamp, onde realizava palestras e simpósios para os alunos o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Explicava, elaborava, recitava. Sozinha. Raramente alguém se direcionava a ela nos debates.
– Porque durante o debate ninguém se dirige a mim? – questionou certa vez a um professor.
– Ora, os alunos têm medo de você.
Medo de Hilda Hilst. Com humor, encontrou uma solução. Decidiu esperar que uma amiga japonesa lhe desse uma coleção de máscaras orientais.
“Queria ter uma máscara de bem disposta, uma de carente, uma de séria, para ir vestindo nas conferências, conforme a necessidade de cada momento. Mas também queria uma de brava, para enfrentar os que me agridem.”[3]
Não ganhou as máscaras, mas o título de patrona da turma dos formandos de 1994.
– Não se preocupem – alertou aos alunos quando lhe deram a notícia –, eu é que tenho medo de vocês.
Com Olga, foi diferente. Quando percebeu seus olhos azuis se desviando dela como uma tímida fuga, expressou seu incômodo direcionando-se à apática e nova moradora: “Porra! Puta que o pariu!”. Daí então, Olga começou a perder o medo. Hilda quis tingir os cabelos como ela. As duas passavam Henna nos fios enquanto conversavam. O tempo passava demasiado e a cor se acentuava nas cabeças distraídas.
– Cenoura Vesúvio[4]! – caçoava Mora Fuentes das cabeleiras rubras.
Para se divertirem, iam ao extinto bar e restaurante campineiro Armorial, onde Hilda se sentia muito à vontade, pois conhecia o proprietário, Ângelo Lepreri. Depois de beber alguns Manhattans, dominava o microfone da banda que se apresentava, e cantava, afinada, com uma voz sensual[5] .

“Some day he’ll come alone
The man I love
And he’ll be big and strong
The man I love
And when he comes my way
I’ll do my best to make him stay”[6]

A música perdia a entonação original gradativamente conforme as doses de Manhattans. Uma, duas, três interpretações na mesma noite. Ninguém agüentava mais. Ela não largava o microfone. Era sempre a mesma canção.

“We’ll build  a little home
Just meant for two
From which I’ll never roam
Oh, what would you
And so all else above
I’m dreaming of the man I loooooove” 

O público queria que ela fosse embora, que parasse de cantar e a banda, enfim, tocasse. Recebeu reclamações e não teve dúvidas. Fez do aperitivo sua arma contra os incomodados: arremessou azeitonas na platéia. Os amigos em volta morriam de rir.[7] 
Hilda não cantava somente em público, mas também para si. Era comum ela acordar cantarolando músicas populares brasileiras de sua juventude, fados portugueses que aprendeu com sua mãe e músicas francesas que ensinou ao Papette, o papagaio que tinha as pontas das asas amarelas caprichosamente listradas de preto e patas que se acomodavam com segurança no pulso de Hilda.
O café da manhã era servido em uma mesa de madeira, encostada na parede e embaixo de um dos arcos do pátio interno, cobertos por lajes inclinadas. Em cada vértice delas existe uma calha para escorrer a água da chuva de forma disciplinada em correntes que iam do topo ao chão, fincadas em círculos de terra. Quando o jato de água era forte, os homens da Casa se posicionavam embaixo para aproveitar um banho refrescante. A vista não alcançava além das telhas marrons-avermelhadas que cercavam o largo, o que dava a sensação de isolamento do mundo.
 Os moradores da Casa sentavam em bancos de madeira alongados ao redor da mesa. Um colorido quadro da Santa Ceia em que Jesus e um dos doze apóstolos deixam cair uma taça de vinho na toalha, ilustra a parede. Parte das inspirações tinham origem no momento de confraternização matutina. Enquanto comiam, falavam de suas noites, de seus sonhos e trocavam idéias de trabalho. Hilda pedia sugestões, informações, fazia muitas perguntas. “Como eu continuo essa história? Como eu construo esse personagem?”.
Quando estava escrevendo Um pequeno discurso. E um grande, teve dificuldades em terminar um conto e ter de arrumar outra idéia para começar um novo. Depois de uma grande inspiração que se esgotava em poucas páginas, teria que fazer nascer novos personagens e um ousado enredo como era de costume.
– Porque você não escreve de um filho que era tão pobre que teve que vender a mãe? – sugeriu Mora em um momento estro.
Ela achou muito engraçado e desenvolveu a história:

“(...) se compram tudo, devem comprar a ti lá na cidade depois te busco, e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a velha, examinando-a como fazia exímio conhecedor de mães, sonhando comprador. Tiô amarrou às costas numas cordas velhas tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.”[8]

A claridade da manhã e o ar puro da fazenda traziam a energia necessária para começar o dia. Depois de tomar o café, Hilda ia ao escritório. Estava pronta para escrever. Agora, para ir até o universo da leitura e da escrita, era preciso passar por uma entrada baixa, de batente em forma de arco. Foram construídas duas paredes aos lados da lareira, fechando a passagem para o escritório, que antes fazia parte das salas de jantar e estar. Acima do batente, um quadro de duas pessoas de cabelos longos, vestidas com túnicas verdes se entreolhando e um homem de pele morena e barba curta, com uma postura tensa, sentado em uma cadeira de encosto comprido, é servido de dois pratos e um copo, numa mesa cor-de-rosa-choque. Ao passar pelo batente estreito e circular, estão livros espalhados por todos os cantos, empilhados lado a lado, um em cima do outro, em fileiras verticais e horizontais que formam um organizado caos de folhas e capas.
Hilda isolava-se no escritório e só saía quando o mínimo de palavras que ela determinava estava concretizado nas folhas de sulfite. Ficava até duas, três horas da tarde. Quando nesse tempo não era possível conseguir alcançar sua meta, ia almoçar e depois voltava para cumpri-la. Estava obstinada a escrever. Muito.


Sentada numa cadeira giratória preta de assento e encosto macios e quadrados, Hilda fazia um mergulho dentro de si sem medo. No seu íntimo, encontrava a figura trágica do pai. “Escrever, para mim, é sentir o meu pai dentro de mim, em meu coração, me ensinando a pensar com o coração como ele fazia ou ter emoções com lucidez”.[9] A foto de Apolônio ficava na sua frente, em cima da mesa de trabalho. No retrato, ele olhava reto, para ela. Os cantos dos olhos ligeiramente caídos davam-lhe um ar de melancolia. Próximos à imagem, cristais de quartzo, pequenos budas de pedra ora sorridentes ora mal-humorados.
Quando queria desviar o olhar desses objetos, Hilda girava a cadeira para trás e ficava de frente para a janela. Do outro lado do vidro, recortado por quadrados de madeira escura, uma imagem privilegiada: o jardim da Casa do Sol. Um emaranhado de árvores, espadas de São Jorge, uma espetada bromélia no canto esquerdo à frente de um pé de jasmim manga, que no inverno perdia suas folhas deixando as redondas pontas de seus galhos nus, parecendo dedos esticados para o céu. Do outro lado, um pedestal de cimento acolhia um prato cheio de água, convidativo aos pássaros que sobrevoavam a área à procura das acolhedoras e frutíferas árvores para aterrissar ali e se refrescarem em um banho esparramado de asas que não paravam de se bater e respingar gotas para fora. Logo acima da janela, suspenso por um fio de anzol preso a uma ripa de madeira da cobertura da varanda, um bebedouro para os beija-flores. Hilda erguia os olhos para vê-los aliviarem a sede apressados, com seus bicos pontudos e penas fluorescentes. Era a natureza com suas cores e gestos que denunciavam a delicadeza da vida. Entre as emoções necessárias para escrever, Hilda carregava o sentimento de compaixão pelo seres viventes.

“É o meu próprio processo dificultoso de existir que faz com que venha essa avalanche de palavras, umas assim barrocas demais, e que seja tudo misturado. Porque eu acho que a vida transborda, não existe uma xícara arrumada para conter a vida!”[10]

 Depois de muito sentir, trabalhava em cima do que lhe fora mostrado em seu íntimo apertando as teclas da máquina de escrever Olivetti Lettera 22. Hilda ficava rodeada de livros abertos. A leitura funcionava como mecanismo de disparo para despertar o intelecto e a imaginação. Os temas dos títulos não possuíam relação entre si, como física, poesia, astronomia, ensaios filosóficos. Entre os que iam e vinham da prateleira para a mesa, Poèsie Ininterrompue, de Paul E’luard, e Disraeli, de André Maurois, eram os mais freqüentes.
Os personagens criados por ela eram intensos, criaturas excessivas diante da morte, do amor, do tempo e da vida. Hilda tinha como objetivo criar um selo próprio, um modo que a diferenciasse dos outros escritores, por isso evitava modismos e fazia poucas correções em seus textos. A poesia vinha pronta. Na ficção, trocava apenas algumas palavras.
Trabalho terminado, saía do quarto. Quem estava esculpindo parava de esculpir, quem estava escrevendo, parava de escrever, quem estava lendo, parava de ler. Todos mostravam seus trabalhos. Era a primeira fruição de suas obras. Ficavam ansiosos para ouvir as idéias e a imaginação de Hilda concretizadas naquelas horas em que havia ficado em seu escritório. As sensações provocadas eram diversas. O humor e a ironia presentes nos textos levavam seus amigos a risos frenéticos. Outras vezes, narrava momentos muito tristes dos seus personagens, que trilhavam sempre o caminho dos extremos. As pessoas lhe diziam: “Mas você parece tão jovial, fala mil palavrões, morre de rir e depois o seu livro é tão desesperado”. Ela explica:

“É só através do livro e de personagens que você pode mostrar até onde você conseguiu nadar, até onde você conseguiu mergulhar. Uma vontade que as pessoas conheçam que há um roteiro tortuoso dentro de cada um de nós e que você faz tudo para se exprimir, para se irmanar e às vezes não consegue”[11].

Hilda sentia vontade de que algumas pessoas que ela conhecia compreendessem o seu trabalho, mas elas diziam. “Hilda, infelizmente eu não consegui entender do que se trata”. Então, imaginava que existiam diferentes gradações de emoções. “Talvez eu seja uma pessoa com uma intensidade meio desesperada, uma lucidez também desesperada”.[12]
Desde oito anos de idade, ela não gostava de escrever textos simples e reconhecia sua capacidade de superar os limites da linguagem, como um dia ia fazer. Um trecho de uma carta que enviou a sua mãe, onde revela sua insatisfação com um dos seus primeiros poemas.

24/06/1938
“Querida mamãe
Ofereço este versinho no dia de hoje.

Esta festinha bonita,
Esta doce expressão,
Que comanda a mamãe
No meu doce coração

Perdão mamãezinha se não posso oferecer-lhe uma coisa melhor
Desculpe a simplicidade de minha carta
Sua filhinha Hilda”

Assim como ela, seus amigos não conseguiam ser simples. A jornalista Ana Lúcia Vasconcelos sempre ouvia de seu editor: “Baixa o nível desse texto!”. O músico erudito Antonio Almeida Prado, primo de Hilda, se consolava: “Eu não toco viola ao luar”E Hilda admitia: “Eu não consigo ser simples”.
 ‘Simpres’, Hilda, ‘simpres’ – brincava Ana Lúcia.
Debochada, Hilda foi atrás da janela, fez do batente de madeira escura a moldura para o seu tronco. Imitou melosa e pausadamente alguém que ouviu em São Paulo lendo um de seus poemas:

“Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei para que seja  leve
Meu passo
Em vosso caminho”[13]

– Imagine se é isso?! – comentou com a amiga Ana Lúcia Vasconcelos – Não é nada disso!
Ninguém conseguia ler a poesia hilstiniana como a própria autora. As pontuações e as cadências eram únicas quando articuladas por sua voz, com um fundo do doce sotaque português, relembrando a origem lusitana de sua mãe que a chamava de Hildinha e o “l” era todo suspirado, enrolado, muito bonito. Hilda usava o mesmo sotaque para se comunicar com os céus. “Talvez com esse melado na fala ele possa prestar mais atenção. ‘Ai meu Deus, por favor, não me dê muitas mágoas, muitos martírios’” – falava como se Ele estivesse perto, mas sozinho.

“Acho que Deus está irremediavelmente, definitivamente sozinho. Deus está na escuridão, o próprio Deus luta, procura, quer alguém que lhe estenda a mão, O ajude. Por isso, coloco Deus de várias maneiras na minha Literatura: Deus pode ser crueldade, a busca, o indiferente”.[14]

Hilda O chamava por diversos nomes em seus textos. Deus. “Cara Escura, Soberano, Cadela de Pedra, Grande Incorruptível, Lutero Rajado, O Mudo Sempre, O Grande Rosto Vivo, Vossa Onipotência, Sacrossanto, Sumidouro, Ominoso, O Semeador, O Cego, Cara Mínima, O Mundo Sempre, O Grande Obscuro.”[15] Deus.
Ela não entendia a razão do sofrimento. Deus, para ela era um “sádico monstruoso um sádico, que permite por exemplo, que o crocodilo egípcio do rio Nilo durma de boca aberta as margens do rio Nilo: por ela ratos vorazes entram e assim o devoram por dentro, estraçalhando suas entranhas”.[16]

Hilda desafiava a divindade. O provocava, O blasfemava:

“(…)O teu Deus nos cuida assim, como os homens cuidam dos cães sarnentos: a porretadas. O teu Deus nos cuida assim como os homens cuidam das cobaias, para a morte, para a morte, nós todos caminhamos para a morte, repasto para o teu Deus e ele lá de cima, insaciável, dizendo: venham meus filhos, venham alimentar-me.”[17]

Desejava que Ele ficasse furioso e lhe desse uma resposta:

“Está bem, eu estou aqui!”, ou seja o que for, surgisse qualquer luz impressionante, qualquer coisa que me pudesse dar pelo menos qualquer explicação de algum ato mínimo da minha vida”[18]

Hilda admirava a história dos santos, em especial Teresa de Lisieux. O retrato de Santa Teresa ficava ora na parede do quarto de Hilda, ora na entrada de seu escritório. Na foto, Teresa, vestida de freira, mantém os lábios apertados e um sorriso de “monalisa” no olhar, enquanto um terço comprido escorre entre as suas mãos e uma cruz mais alta do que ela é amparada na volumosa folhagem ao seu lado.
Teresa morreu sufocada pela falta de ar aos vinte e quatro anos devido à tuberculose. Antes de descobrir a doença, sentia-se incomodada com a tosse contínua, não pelo sofrimento físico que trazia, mas pelo moral: não queria amolar as carmelitas de Lisieux com seus murmúrios. Não queria ser percebida.
“A verdadeira sabedoria consiste em querer ser ignorada e tida por nada. Eu desejava que meu rosto ficasse realmente escondido e que ninguém nesta terra me reconhecesse”.[19]

Assim como Hilda, o primo Antonio Almeida Prado se interessava pela vida dos santos. Escrevia com freqüência para Hilda para falar de santidades. O músico é um homem de fé. Seu encontro com Deus aconteceu em um Carmelo.
Em janeiro de 1964, José Antonio entrou no Carmelo São José, em Santos, São Paulo. A carmelita Sra. Matilde o atendeu e o levou por duas horas para percorrer o local. Para ele, era um lugar que “estava no mundo, mas não pertencia ao mundo”. Podia perceber que “Deus o esperava entre as árvores suaves e o silêncio”. Quando foi embora, decidiu se entregar inteiramente a Ele. A partir daí, as cartas que escrevia para a prima eram recheadas de inspirações sobre o sagrado.

A primeira visita que ele fez à Casa do Sol foi em novembro de 1966. Achou o lugar privilegiado, a casa branca, calma, cheia de amplitudes verdes e azuis, um lugar perfeito para um encontro com Deus. Quando soube que Hilda havia mudado para a Casa, imaginou que ela sentia “necessidade de encontrar o ‘lugar’, o sítio, a morada onde poderia iniciar a espera dAquele que gosta do silêncio, da espera na solidão”. Acreditava que Casa que a prima construiu “é a morada que está preparada para que o Senhor venha, bata à sua porta e diga: Eu hoje estarei contigo”. Em carta, Almeida Prado incentivava-a a continuar seu trabalho de poeta, pois acreditava que ela tinha uma missão. A missão de “gritar ao mundo, as coisas que os homens às vezes não vêem”. Mais do que isso, considerava que Hilda iria mostrar através de seu trabalho “os campos, as pedras, os eucaliptos, os peixes, o céu, as nuvens, as dores, as angústias, a solidão e a sua ânsia de Deus!”.
Dia 10 de abril de 1988, Almeida Prado a presenteou com um livro sobre o padre Maximiliano. Hilda chorou ao ler o relato de sofrimento do padre polonês tornado santo após se oferecer para morrer no lugar dos vinte companheiros de cela que seriam assassinados em represália por causa de um fugitivo do campo de concentração nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Maximiliano faleceu depois de ficar dias sem comer, com uma injeção de ácido fênico aplicada pelos militares em seu braço esquerdo. O padre dizia que “a tortura da fome faz descer o homem ao nível do animalesco, pois a resistência humana tem os seus limites — além dos quais só restam o desespero ou a santidade." [20] 
Hilda se perguntava: “O que é a santidade, meu Deus? E porque é preciso sofrer tanta dor, suportar tanta crueldade?” [21] Ela não compreendia o porquê do sofrimento, se era preciso sentir dor para alcançar a luz. Quando era interna no colégio Santa Marcelina, as freiras contavam as histórias dos santos mártires. A vida de Santa Margarida Maria Alacoque era a que mais lhe impressionava. A santa bebia a água da bacia onde lavava os pés dos leprosos. Ao ouvir a história, Hilda levava um lenço à boca e saía correndo para vomitar. Mesmo assim, queria ser santa. Saía com os joelhinhos doloridos do oratório. Ficava horas rezando porque queria ser como Teresa de Lisieux. As freiras achavam que Hildinha tinha amor-próprio. Ordenavam a ela para que andasse várias vezes pelo extenso corredor do internato Santa Marcelina para perdê-lo. Mas o que era o tal do “amor-próprio”? Perguntou para sua mãe.
– É porque você é muito orgulhosa. Deve abaixar a cabeça quando as freiras falam
– Eu só tenho que baixar a cabeça diante de Deus.[22]
Hilda acreditava que todos deveriam ser assistentes sociais, missionários, santos. Acreditava que existia “uma centelha sem nome se desenvolvendo dentro de cada um”.[23] Fazia novena para Santa Clara: nove Ave-Marias e quatro pedidos: a venda das terras da fazenda, êxito para os livros, saúde e criatividade. E continuava conversando com Ele todas as noites.
Deus, o “Tríplice Acrobata, Coisa Sem Nome, Máscara do Nojo, Potente Implacável, Cara Cavada, Cão de Pedra, Incognoscível, Fazedor, Grande Riso, Artífice, O Isso, Grande Corpo Rajado, Infundado, Porco-Menino Construtor do Mundo”.

















































[1] MASCARO, 21 jun 1986
[2] BUONFIGLIO, Mônica. Almas Gêmeas. Oficina Cultural Mônica Buonfiglio. P.128.
[3] Potlatch, a maldição de Hilda Hilst. José Castelo. O Estado de São Paulo, 30 /10/94.

[4] Vulcão de 1.220 metros de altura, localizado em Nápoles, Itália.
[5] drink alcoólico
[6] The man I love/ George e  Ira Gershwin
[7] SILVESTRE,Fabiano. Hilda humana Hilst. Campinas: Editora da Unicamp, 2002
[8] HILST, 1977, p. 40.
[9] RIBEIRO, 18 abr 1977
[10] MASCARO, 21 jun 1986
[11] Id., Ibid.
[12] Id., Ibid.
[13] HILST, Hilda. Trovas de muito amor para um amado senhor.  São Paulo: Anhembi, 1959.
[14] RIBEIRO, Léo Gilson. Revista Goodyear, jul 1989 apud BORSERO, Cássia Rosana. A mãe do Sarcasmo. ECA, USP. São Paulo, 1995.
[15] Nomeações dada a Deus por Hilda Hilst em seus livros. Fonte: Placa da exposição “Hilda Hilst 70 anos”, SESC Pompéia, São Paulo, 2000.
[16] RIBEIRO, apud BORSERO, 1995.
[17] HILST, 1977, p.276
[18] MASCARO, 21 jun. 1986

[19] GUY, GAUCHER. A Paixão de Teresa de Lisieux. São Paulo: Loyola, 1977. p20.
[20] Pater Maximilian Kolbe: Friburgo, 1952.
[21] HILST, Hilda. Agenda 1988. 10 abr 1988. (Arquivo Cedae UNICAMP)
[22] SILVESTRE, Fabiano. Hilda Humana Hilst. Vídeo. UNICAMP. 2002
[23] HILST, Hilda. Caderno. 21 fev 1985. (Arquivo Cedae UNICAMP)