Cap. 7 - Silêncio


“Não há silêncio bastante/ Para o meu silêncio”.
Hilda Hilst, Roteiro do Silêncio, 1959

O teto era de papelão, como tudo naquela casa. Por dentro era escura; por fora, branca. Sem porta, sem janelas. Mas tinha passagem. Apenas uma, na frente, como nas pirâmides egípcias. Pertencia a um ser de língua fina, ágil e espantosamente protáctil. Se presa, sua longa cauda separava-se do corpo gelado e, ainda assim, mostrava fortes contrações. Depois, a partir da parte restante, regenerava-se um coto que não balançava, apenas curvava-se para o lado. Os dedos eram providos de placas adesivas que tornava possíveis as seguras escaladas pelas paredes, onde quase arrastava sua barriga lisa e deixava à mostra o áspero dorso. Seus olhos, dois pontos negros, ausentes de qualquer expressão. Não era um monstro. Era uma lagartixa. Hilda confeccionou um lar para ela e seus dois filhotes. Vivo havia ido embora, e os répteis eram os alguns dos poucos hóspedes da Casa do Sol, junto com os cães e o Índio, apelido que Hilda dera ao novo caseiro.
– Você é o Índio – decretou ao empregado, que nada tinha a ver com indígenas.
Também fez parte da sua “selva” Jefferson, um homem moreno e alto que aparentava ter menos de trinta anos. Ele vendia coco em uma perua kombi no trevo da estrada Campinas-Mogi Mirim, que leva ao condomínio. Sua curta estadia na Casa teve como uma das finalidades conseguir convencer os cachorros a comerem ração. Antes, eles só se alimentavam de arroz com pescoço de frango, o que tornava os preparativos para suas refeições algo demorado e cansativo. Afinal, naquela época existia cerca de setenta e cinco animais no canil e mais quinze que perambulavam pela casa. A porta da frente ficava aberta o tempo todo para eles, que entravam e saíam à hora que bem entendessem, ora para latir no portão, ora para fazer suas necessidades. Por mais frio que fizesse, a passagem continuaria aberta para o vento e os companheiros caninos. Hilda não concebia uma casa sem cães. Com eles, não se sentia sozinha. Nem quando estava doente queria que alguém ficasse ao seu lado. O telefone ficava na cabeceira de sua cama para casos de emergência. Certa vez, ela teve uma forte gripe e a vizinha e amiga Inês Parada foi até a Casa, preocupada. Ela havia ficado deitada no quarto o dia todo. Inês encontrou o portão e a porta abertos às dez horas da noite.
– Hilda, você não está bem, está quente.
– Não, está tudo bem.
– Eu vou ficar aqui. Não estou tranqüila.
– Não, pode ir, estou bem. Prometo que, se eu ficar mal, eu te ligo. Não é necessário ficar aqui porque eu não vou conseguir dormir com você aí sentada na cadeira, olhando pra mim.
Inês sorriu. Voltou para a casa e dormiu com o telefone sem fio ao lado. Mas ele nunca tocava à noite. Ela ligava ao amanhecer, com os questionamentos mais inusitados:
– Inês, como será isso do não ser?
– Isso é coisa que se pergunte às oito horas da manhã? – respondia, bem-humorada.
Hilda não parou de se questionar sobre “não ser”. Buscava uma reposta definitiva. Muitos amigos haviam morrido, entre eles o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu. Caio faleceu em Porto Alegre, no hospital Menino de Deus, no dia 25 de fevereiro de 1996. Desde que saiu da Casa do Sol, continuou se correspondendo por cartas e fazendo visitas à amiga.
Em 1974, Caio andava com os cabelos tingidos de vermelho pelas ruas de sua cidade natal. Usava brincos imensos nas duas orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas de pequenos espelhos. O estilo era importado: viajou por um ano pela Europa: Espanha, Estocolmo, Amsterdã, Londres e Paris. Em 1983 mudou-se para o Rio de Janeiro e, dois anos depois, foi para São Paulo. Voltou à França em 1994, a convite da Casa dos Escritores Estrangeiros, e descobriu ser portador do vírus da AIDS. Foi quando decidiu retornar para a capital gaúcha e viver com seus pais. A última atividade de Caio era cuidar de roseiras, o que dava um sentido delicado para sua vida. Havia combinado com Hilda que, quando um deles morresse iria aparecer para o outro com um sinal vermelho. A cor indicaria que tudo estava bem. Hilda teve uma visão de Caio no dia em que ele faleceu, às dez horas da noite. Viu que ele usava um cachecol no pescoço, com uma fita vermelha. O vermelho da vida.
“Eu abracei o Caio, muito, e disse: ‘Nossa, como você está bonito, está jovem!’ Mas ninguém acredita. Falam: ‘A Hilda é bêbada, uma alcoólatra, está sempre louca”[1].
 No mesmo ano, a escritora sofreu a primeira isquemia. A doença se caracteriza pela suspensão da circulação sangüínea numa zona localizada do organismo. No caso dela, foi afetada a região do cérebro responsável pela atividade motora, com maior dano na parte que coordena o movimento dos lábios. A partir de então, ela passou a ter dificuldade para articular o maxilar. Sua voz saía com esforço, num tom baixo e suspirado.
Com a doença, sentiu a degeneração do corpo. Percebeu-se envelhecendo. Ficou amarga como sua mãe havia ficado quando doente. Bebia todos os dias, assim que o sol se punha. Cinco eram as doses de que conseguia se lembrar. Agredia os amigos verbalmente, como se assim pudesse descarregar suas mágoas, mas o conflito interior só aumentava. Era o desespero de sentir que sua história chegava ao fim. Nunca mais se apaixonaria. Por uma pessoa. Por uma idéia. Pela idéia de se apaixonar. O álcool lhe proporcionava desabafo, às vezes finalizado por um choro silencioso. No dia seguinte, acordava sem dores de cabeça, mas ainda num processo crescente e acelerado de tristeza. Não sentia vontade de comer. Estava anêmica. Hilda fumava três maços de cigarro por dia. Mora Fuentes pedia para que ela parasse, quando ia visitá-la.
– Me deixa.
– Pelo menos pára de chorar... – pedia emocionado.
Sabia que não dava para consolá-la como qualquer outra pessoa. Por isso, preferia o silêncio. Havia a levado a um médico neurologista, que lhe deu um leve estimulante, de efeito demorado. Em questão de meses, seu apetite e sorriso voltariam a se abrir. No ano seguinte, decidiu que não iria mais escrever. Estar sendo. Ter sido. seria sua última criação.

“Cores, calêndulas, anêmonas, espumas sobre um rio leitoso, onde? Onde? Alguém se atirou no Ouse... quem? Não gostaria de morrer afogado não, sei que se vê a vida inteira dizem, não quero ver minha vida inteira, nem um pequeno trecho desta vida, sentir ainda seria alguma coisa, sentir o quê, Vittorio? Um certo brilho uma certa cara, a descoberta de ter escrito: ‘Deus’? Uma superfície de gelo ancorada no riso".

Não tinha mais o que dizer. Apenas o silêncio. A expressão de seu rosto tornara-se ainda mais intensa. Somente ele poderia falar. Seu olhar continha significados que se estendiam ao próximo de forma clara e contundente. Nada poderia ser mais inquietante do que sua face, um livro de histórias em que ela era a protagonista.

“Um frio comediante o tal Deus. Gostei quando escrevi isso. Ancorado no riso, isso é bom, a descoberta de ser desprezado, de não ser, de ser apenas um corpo envelhecendo, uma boca vazia agora silenciosa, não neste instante silenciosa, mas uma eternidade silenciosas, e isso também de não ter entendido nada, isso soa penoso e sinistro, mas não é...”

Hilda dizia que só queria morar em sua Casa até morrer e receber os amigos. Havia cortado os cabelos na altura do nariz e usava chapéus de palha para andar sozinha pelo jardim. “Eu não tenho nenhuma expectativa de nada. Não me interessa mais o mundo da Terra”. Ainda escreveu um texto de oito páginas sobre uma azeitona, chamado O Koisa, que começa assim: “À meia-noite entrarei na empada”. Essa foi a sua última história. “Prefiro ficar pensando em meu pai” – dizia. Estava debilitada pelos problemas de saúde, caminhava com dificuldade e pouca desenvoltura. Porém, quando falava de sua obra, nada restava daquela mulher fragilizada pela doença: seu semblante se iluminava e a vida resplandecia em seus olhos. A voz saía com esforço, mas vigorosa. Ela não se preparava para dar entrevistas. As repostas eram espontâneas e verdadeiras, como estas para a Revista da Folha.

“O que você odeia fazer e continua fazendo?
Dar entrevistas imbecis.
Qual a pior cantada que você já deu?
Foi pedir à figueira que ela desse frutos antes da época.
Já sentiu vontade de morrer?
Estamos vivos? [2]

Sempre que era entrevistada, Hilda chamava alguém para assistir. Certa vez, a TV Cultura estava gravando uma entrevista na Casa do Sol, quando ela chamou diversas vezes pelo atual caseiro, Francisco das Chagas, o Chico, que não a atendia. Depois de vários “Chico!”, enfim, ele apareceu.
– Onde você estava?
– Cuidando dos cachorros.
Hilda levantou-se e ergueu a saia, dirigindo-se a ele:
– Se fosse pra isso você vinha, né?
Antes de vir para a Casa, Chico trabalhava em uma firma como peão e fazia serviços na chácara de um chileno, onde havia quatro cachorros. Ele não sentia medo dos animais, o que chamou atenção do proprietário. Nunca havia encontrado um empregado que não os temesse.
– Você conseguiria trabalhar na chácara de uma escritora, com muitos cães? – perguntou a ele.
Chegando à Casa do Sol, Chico se surpreendeu: quinze cachorros saíram desatinados ao seu encontro assim que pôs os pés na frente do portão. Nem imaginava que mais sessenta o aguardavam no canil.
– De onde você veio? – perguntou Hilda
– Rio Grande do Norte, Natal – respondeu, com pesado sotaque nordestino, confirmando sua origem.
– Você ganha quanto no seu trabalho? Pago o dobro para você cuidar dos meus cachorros.
Chico era quieto, só respondia o que lhe perguntavam. Hilda queria sua companhia. Acomodada na poltrona baixa de forro amarelo, tinha o seu tronco envolvido pelo encosto arredondado, que se estendia aos braços formando um semicírculo. Com um copo de uísque na mão, ela pedia:
– Vem aqui assistir ao jornal.
O caseiro sentava-se acanhado no sofá. Fixava os olhos na TV. Mal se mexia. Poderia escutar sua própria respiração.
– Você é mudo, é? Não fala nada, não conversa...
– Não, Dona Hilda, eu sou “quietão” mesmo.
Ela insistia em fazer perguntas, mas ele não se soltava. Chico era analfabeto, sentia-se intimidado em conversar com uma escritora.
– Bossa criado mudo – ela satirizava.
O apelido criou confusão quando Hilda pediu para ele buscar uma calçadeira que estava no...criado-mudo. Ele achou graça. Pensou que fosse mais uma de suas piadas. Ela insistiu séria.
– A calçadeira está no criado-mudo, no meu quarto.
Continuou parado, olhando para ela com ares de bom humor.
– Vááá, Chico!
Ele foi até o quarto e voltou rindo:
– Olha, Dona Hilda – respondeu entre risos – lá não tem criado mudo não, se tem já foi embora.
Ela achou muito engraçado. Percebeu que Chico realmente não sabia que era um móvel. Levou-o até o seu quarto para mostrar-lhe do que se tratava e contou o que havia acontecido para todos que iam visitá-la. Ele não entendia algumas palavras e expressões devido às diferenças de linguagem entre o nordeste, onde ele nasceu, e o sudeste do país.
Hilda sentia-se incomodada por Chico falar: “vinhé”, para vier, “muitcho”, para muito.
– Chico, quando tiver um amigo meu aqui você não pode falar isso!
– Mas não é errado, é que no nordeste a gente fala assim!
Ela anotava todas as novas palavras e expressões que desconhecia e Chico lhe apresentava, como a que usou certa vez, quando os cachorros estavam alvoroçados no canil.
– Chico, porque eles estão latindo tanto?
– Eu dei a ração, agora “cada-cá-que-queira”!
– O quê? Isso é uma planta? Uma árvore?
“Cada-cá-que-queira” era o modo apressado de ele dizer “cada qual que queira”. Mas nem sempre suas palavras eram incorretas. Numa noite de inverno, Hilda sentou-se na sala de jantar. A sala era decorada por um baú mesclado de verde-musgo, preto e marrom-avermelhado, com puxadores de ferro nas gavetas. Em cima, o quadro de Jesus com pescoço comprido e fino e tronco largo, segurando um peixe contra o peito. Um halo laranja circunda sua cabeça de cabelos amarelos.
Chico acendeu o fogo da lareira e ficou à sua frente. Em uma das repartições de pedra que se estendiam acima, uma face esculpida de madeira de nariz fino, olhos grandes e lábios semicerrados, prontos para dizer alguma coisa. A porta permanecia aberta para os cachorros que circulavam livremente entre a Casa e o jardim. Por isso, quanto mais escurecia, mais a temperatura caía dentro da Casa.
– Atchim!
– Hilda, você está com estalicídio.
– O que quer dizer estalicídio?
Chico explicou que na região onde morava, era o mesmo que estar com coriza. Incrédula, Hilda procurou a palavra no dicionário, e achou-a. Ficou surpresa. "Estalicídio", pensou, "onde é que esse homem foi descobrir isso?". Ela não se conformava em ter um empregado que não sabia ler. Contratou uma professora particular para lhe dar aulas de português à tarde.
Na mesma noite, Hilda entregava-lhe livros de sua autoria, pedia para que lesse um trecho e explicasse o que havia entendido. Ele não conseguia elaborar comentários.
– Essa professora sabe ensinar nada não, vou mandar ela embora amanhã.
– Mas em um dia você já quer que eu esteja lendo o livro inteiro?
Ela insistia para que Chico passasse o tempo livre debruçado em leituras, mas ele dizia não conseguir se concentrar em outra coisa que não fosse o seu trabalho. Hilda queria conquistar a sua confiança. Logo que acordava, tomava uma xícara de café preto enquanto assistia ao jornal da manhã. Chamava-o para fazer companhia, junto com os três cachorros que a rodeavam com lealdade; o gorducho Totó, Cavalinha, malhada de branco e preto, e a geniosa Aninha tinham algo em comum: todos eram pequeninos. Hilda os considerava os mais “coitadinhos”, devido à desvantajosa estatura em relação aos outros guardiões da Casa. Ficavam ganindo, implorando por pedaços do que se estava comendo. Aninha abanava o seu rabinho negro com as pontas dos pêlos caramelo, retorcido para trás como um espanador.
– Eu vou bater nela, Hilda, ela não te deixa comer! – brincava Chico
– Não fala isso, eles entendem o que você diz. Olha a cara da Aninha olhando para você.
Hilda agarrava a cachorra com as duas mãos, a acomodava em seu peito, de frente para Chico. Os olhos de Aninha eram negros e redondos como se estivesse o tempo todo em alerta, como duas jabuticabas graúdas e brilhosas saltadas na cara.
– Peça desculpas a ela, Chico! Aninha – dizia olhando para seu focinho fino –, ele não vai fazer isso – confortava a protegida.
Hilda não queria que os cachorros fossem repreendidos. Deixava-os latir, sem reclamar do barulho. Acreditava que eles compreendiam tudo o que ela dizia e sentia. Considerava-os ótimos observadores.
Chico ficava pouco para o café da manhã e logo se levantava para fazer seus serviços da Casa. Hilda reclamava.
– Nem agora você fica pra tomar um café, me larga aqui sozinha.
– Mas eu tenho um monte de coisas pra fazer...
Ela levava a mão esquerda embaixo do cotovelo do outro braço, que permanecia dobrado para o alto e com os dedos juntos, imitando uma cobra naja. Chico saia sorridente baixando a cabeça. Às vezes ficava para assistir ao jornal. Quando Hilda não conseguia ouvir alguma coisa, perguntava a ele, que na maioria das vezes não havia entendido.
– Nossa, Chico, o que você está fazendo na frente da televisão? Você é daqueles criados mudos e surdos que não escutam nada.
Chico ria. Ela também. Gracejava enquanto dava a bronca.
– Não sei o que você está fazendo aqui do meu lado. Fica bossa “mudão”, não conversa comigo e não vê nada...
Com humor, Hilda conseguiu conquistar a confiança do caseiro aos poucos. Chico trabalhara como pedreiro em Natal e veio para São Paulo em busca de um futuro melhor. Quando sua mulher voltou para o Norte com a filha, ele desabafava com Hilda, fazendo assim estreitar os laços de amizade. Anos depois, encontraria um novo amor, com quem teve duas filhas. A primeira coisa que Hilda perguntava era delas. Assim que acordava, chamava-o e não queria saber dos cachorros ou da limpeza do quintal.
– Como é que estão as meninas?
Ela se preocupava com as garotas e tinha afeição pelo caseiro. Por isso, fez a ele uma promessa que foi cumprida:
– Chico, quando eu for embora, vou deixar a casa onde moro para você. Um cantinho pra cuidar das suas meninas.
Ele ficou emocionado, mas uma tristeza ainda o incomodava: as saudades da família e da filha que ficaram no Norte. Quando venceu o prêmio Moinho Santista em 2002, Hilda pagou passagens aéreas para ele reencontrar as pessoas que amava. Ela participou dessa e de outras premiações porque, durante seu trabalho, a amiga Inês Parada procurava saber pela Internet quais os concursos literários que estavam acontecendo para inscrever as obras de Hilda. Ela se prontificava a coletar todos os documentos e materiais necessários para que a amiga concorresse aos prêmios. Quando a via, perguntava:
– Você tem alguma notícia cintilante para mim?
– Estamos vivas, Hilda.
– Fora essa.
Hilda não se importava com as estatuetas que ganhava, dizia que na maioria das vezes eram “só honrarias e nenhum para pagar as contas”. Por isso, raramente comparecia aos eventos em sua homenagem.

“Eu sou uma escritora. O premiado foi o livro, não fui eu; o que ganhou o prêmio não é mais eu, é algo que saiu de mim e sobre que não tenho mais controle. Bem, gostaria de ser um político, adestrada para ter uma exteriorização comedida e apropriada para cada ocasião, mas não tenho esse controle. E se na hora do prêmio eu estiver triste ou furiosa, mergulhada na mais profunda angústia e querendo mandar tudo às favas?”[3]

Ela mandou tudo às favas quando recebeu o de título de Cidadã Campineira em 1997, projeto do vereador Romeu Santini. Naquela mesma ocasião, a Casa do Sol poderia ir a leilão devido a uma dívida de cem mil reais de impostos com a prefeitura. A região do Parque Shangri-lá, condomínio onde fica a Casa do Sol, passou a ser considerada Zona em Expansão e não mais Zona Rural, o que fez com que o imposto ficasse mais caro. Não havia como pagar aquela quantia. 

“O que eu tenho para vender? Os móveis não valem nada. Tenho uma gravura da Maria Bonomi. Será que serve? Já quis fazer da casa um bordel geriátrico, talvez fosse a solução”.[4]

Nessa época, setenta cachorros moravam no canil, e não tinha para onde ir com todos eles. O que lhe restava era receber o título de Cidadã Campineira, que ela se recusou a buscar. Francisco Sellin, então presidente da Câmara dos Vereadores da cidade, foi até a Casa do Sol. Hilda encontrou-o no portão. Sellin explicou que ela não precisaria ir até o centro da cidade pra receber o título.
– Faremos uma cerimônia na portaria do condomínio. Basta ir até lá que nós a honraremos com o título.
– O senhor não está percebendo que eu sou uma mulher sendo despejada com setenta cachorros?
– A senhora deveria me agradecer por eu ter organizado tudo isso.
– Eu lhe agradeceria se o senhor me chupasse a cona!

Para que a Casa não fosse a leilão, foi realizado um abaixo-assinado “de protesto contra o tratamento indigno que Campinas demonstra à importância nacional de Hilda Hilst”, que trouxe entre outras firmas a dos escritores Paulo Coelho, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, de Rodolfo Konder (então secretário municipal de Cultura de São Paulo) e do dramaturgo Plínio Marcos.
As dificuldades financeiras não cessaram. Em 2001, Hilda foi afastada do programa de Artista Residente da Unicamp, que lhe rendia dois mil e cem reais por mês, ficando apenas com a aposentadoria de setecentos reais. Gastava aproximadamente mil reais com os quase setenta cachorros que habitavam o canil na época. Para conseguir mais recursos financeiros, Mora Fuentes havia passado dois anos batendo na porta de editoras para publicar a obra completa de Hilda.
– Mas são as obras de Hilda Hilst! – insistia
Soube através de Malu Mendes Fúria, jornalista do diário Valor Econômico, que a Editora Globo iria renovar os autores. Isso aconteceu na mesma época em que Bruno Tolentino estava hospedado na Casa do Sol. Bruno conhecia o editor Wagner Carelli, o que facilitou o contato com a Globo. O contrato foi fechado, em 2001, foi iniciado o trabalho de edição. Hilda recebeu um adiantamento que lhe auxiliou em um dos momentos mais dramáticos de sua vida. No dia três de janeiro de 2003, Hilda levantou-se da sua cama com sintomas de labirintite e não conseguiu se segurar. Todos ouviram um barulho de impacto. Olga , a mulher de Mora Fuentes, que também estava na Casa naquele momento, foi correndo para o quarto. Ela estava no chão.
– O quê está acontecendo, Hilda?
– Eu caí.
Devido à colisão na lajota, havia fraturado o fêmur em três partes. Foi colocada uma prótese de titânio no local. Ficou uma semana internada. Inês foi visitá-la assim que voltou para a Casa. Entrou pela sala, passou pelo escritório. Hilda reconheceu do quarto os passos da amiga vindo em sua direção.
– É a Inês.
Juntou os dedos em uma expressão de quantidade e contou:
– Inês, levei um tombo, mas um tombo!
Hilda ficou meses andando apenas de cadeira de rodas. Depois de várias sessões de fisioterapia, conseguia andar se apoiando em uma bengala de madeira avermelhada. Mas parecia que nada havia acontecido. Ela continuava sorrindo. Seus cabelos estavam ainda mais curtos e tingidos de loiro-escuro. Os ossos do pescoço estavam salientes, mas o seu sorriso continuava vigoroso.

Alguns amigos telefonavam, e ela não queria que a vissem daquele jeito. Falava com Lygia Fagundes Telles diariamente. Certa vez ligou com apenas para fazer uma afirmação.
– Lyginha, a alma é imortal, nós somos imortais.
E perguntava à amiga Ana Lúcia Vasconcelos do outro lado da linha:
– Ana, estou envelhecendo, e você?
– Eu também, Hilda.
Ana Lúcia queria visitá-la, mas a resposta era sempre a mesma:
– Deixa o Zé (Luís Mora Fuentes) chegar de São Paulo que você vem.
Mora Fuentes estava de volta à Casa desde 1998. Às vezes levava Hilda ao médico, em São Paulo. Ela ficava em seu apartamento, onde não podia ouvir os cantos dos pássaros, o barulho do vento batendo nas folhas das árvores, cachorros do canil latindo e uivando assim que amanhecia. Foram a uma loja e resolveram o problema: compraram um relógio em que, de hora em hora, imitava o piado de um pássaro diferente: currupião, curió, quero-quero, bem-te-vi, tucano, jaó, curiango, sabiá laranjeira, pintassilgo, galo-da-campina, juruva, uirapuru. Quando voltou para a Casa, levou-o com ela, para se juntar ao coro da mata. Ela passava a maior parte do tempo no quarto. Uma hora. Duas. Três. Um relógio dourado avisava em volta de seu eixo:
                               
                                MAIS
                                                      TARDE
                         DO
                                        QUE
                                   SUPÕES’

Na sua frente, na estante de pedra da lareira de seu quarto, estava um conjunto de bateria completa em miniatura, presente de aniversário de Gisela Magalhães, sua amiga desde a juventude. Gisela conheceu Hilda na década de 1950, época em que ela contava a todos o seu desejo de ser baterista. O presente veio em 2000, de forma bem-humorada, quando a escritora estava com setenta e dois anos. Naquele ano, Gisela coordenou a exposição Hilda Hilst 70 anos, no SESC Pompéia, em São Paulo, sobre a vida e a obra da autora. Foi construída uma parede forrada por uma foto da figueira do jardim da Casa do Sol em um entardecer de nublado horizonte. A foto em preto-e-branco continha, em toda a sua extensão diversas imagens de Hilda em tom sépia. No canto direito, uma entrada idêntica à que leva para o seu escritório: baixa, em forma de arco e estreita, como as que levam a um mundo desconhecido, ou a um universo imaginário.


Na véspera de Natal de 2003, a saúde de Hilda estava ainda mais fragilizada. Sentia muita dificuldade para andar. Não era necessário falar. Não havia o que dizer. Hilda estava lúcida. Não puxava assunto para ser sociável. Era espontânea e verdadeira. Falava o que sentia, respondia o que lhe perguntavam. Agora não tinha o que falar. Não saía da cama, não queria comer. Apenas fazia um sinal positivo com o polegar, para indicar que estava tudo bem. Os amigos sentiam que era uma despedida. Sua reação não era a de quem iria viver ao longo do novo ano que se aproximava. A testa quente anunciava que estava febril. Mora Fuentes a levou ao hospital. Passaram a noite natalina sob a luz fluorescente do quarto, onde Hilda ficou internada por horas.
No último dia do ano, Inês foi visitá-la ao entardecer. Estava sentada em sua cama. A cachorra Aninha acomodava-se em seu colo, sendo lentamente acariciada. Aninha dormia em seus pés todas as noites. Roncava tão alto e grave que, se alguém a ouvisse do corredor, poderia imaginar que se tratava de um animal de estatura dez vezes maior do que a da nanica pincher.
Hilda estava muito magra. Os seus braços apareciam mais longos por estarem muito finos, os ossos de seu ombro apareciam delineados sob a larga blusa branca que vestia. Estava toda de branco.
– Feliz ano novo, Hilda – desejou Inês.
Continuava quieta. A amiga quebrou o silêncio com uma brincadeira.
– Você não quer um cigarrinho?
– Não
– E um vinhozinho?
– Não.
– Hilda, assim você vai ser aquilo que sempre quis: uma santa. Não bebe, não fuma e não fode.
Hilda riu. Inês continuou se dirigindo a Mora Fuentes, que estava ao seu lado.
– Desse jeito você vai ter que pegar ela levitando aqui pelo quarto.
Quando foi interna no colégio Santa Marcelina, dos sete aos treze anos de idade, Hildinha adorava tomar um pouco do vinho que o Monsenhor Ladeira guardava na sacristia. Um dia foi pega por ele com a boca na botija:
– Hilda, você não pode tomar o meu vinho.
– Mas eu tô tomando só um pouquinho! – defendeu-se, fazendo um gesto minorativo com os dedos polegar e indicador.[5]
Depois, teve que confessar o feito às freiras. Seu castigo sempre era dar várias voltas pelo corredor do colégio enquanto todos comiam no refeitório. Hilda vestia sapatos pretos e arredondados, como o de bonecas. Suas pernas finas eram cobertas por meia-calça. No final da década de 1940, seriam consideradas as “mais belas pernas do Clubinho de São Paulo”, pelo modernista Flávio de Carvalho.


Por volta das duas horas da madrugada do dia dois de janeiro de 2004, Hilda caiu e fraturou novamente o fêmur. Chamaram uma ambulância, que a levaria para sempre de sua Casa. Passando pela porta da sala, um vaso de alfazema no pilar de entrada da varanda exalava um cheiro de céu.  Dali, o portão parecia tão pequeno, tão... Os coqueiros já haviam crescido, crescido muito. Ultrapassaram a altura do muro e das árvores que os cercam no jardim. Entre os espaços de suas finas sombras, a tênue claridade da noite iluminava a terra clara, que de longe parecia areia branca. Entre o claro e o escuro, a ambulância passou o portão. Agora, de perto, ele era maior. Os dois círculos de sua base pareciam dois tambores. Nenhum cascalho cor-de-rosa cobria o chão. Todos já haviam sido levados pelo tempo. Os coqueiros ficaram para trás. Todas as outras árvores. O balanço, a figueira, os dois guardiões de madeira da porta de entrada. E os retratos na parede da sala de jantar. Ali, os olhos dos seus amores e amigos estão cheios de lembranças. Dante olha para o horizonte, usando um chapéu de aba curta, e ostenta um cavanhaque avantajado. Toledo, também de chapéu, apóia o dedo indicador na boca em um tom pensativo, com os primeiros botões da camisa abertos. Lygia usa um colar de pedras redondas delicadamente vermelhas, mas o que chama atenção é o seu olhar fraternal e o sorriso expressivo que guarda nos lábios. Numa foto azulada, Lupe Cotrin mantém um ar misterioso enquanto um lado da franja ameaça cair-lhe nos olhos. Ana Lúcia, sentada numa cadeira, apóia um dos braços no encosto e olha para a câmera num gesto espontâneo. Caio, vestido de terno e gravata de grandes bolas brancas, já desamarrada, sorri verdadeiramente. Jurandy tem o rosto mesclado entre sombra e luz na foto em preto-e-branco, destacando seus cabelos negros e cacheados. Almeida Prado está compenetrado em uma leitura. Sentado numa poltrona, apóia o livro nas pernas e mantém o olhar baixo. Seu rosto é cheio e sua pele, clara e luminosa. Olga, de frente, cabelos longos e vermelhos, olhos azuis e fixos. Em outra foto, Gisela Magalhães, em pé, fita um Mora Fuentes, sentado, que segura um cigarro com o braço estendido para outro lado. O lado onde Hilda está, com o rosto semi-iluminado e o olhar baixo. Um olhar que não se direcionaria mais aos seus tão queridos livros. Nem aos cachorros do canil, nem aos outros quinze, que foram presos dentro da casa para não escaparem enquanto a ambulância saía. Ficaram ali inquietos, disputando um espaço entre os vitrais das janelas. Ela estava indo embora.


Hilda foi levada ao Pronto-Socorro da Ortopedia do Hospital de Clínicas da Unicamp, onde ficou internada por trinta e seis dias. Inês Parada foi visitá-la na Unidade de Terapia Intensiva do hospital. Achou aquele lugar “desumano e surrealista como um shopping center”, onde ao entrar perde-se a noção do tempo devido à luz artificial. Percebeu que os “internos se encontravam no limiar da grande questão de ser ou não ser”. Hilda estava com tubos na boca e no nariz. Ela a chamava com esperanças de um sinal.
– Hilda, Hilda...
Inês estava comovida. Teve a impressão de que a amiga a entreolhou com lentidão.
– Hilda, é a Inês. Eu gostaria que você voltasse para a Casa do Sol. É a Inês...
Queria acreditar que Hilda a reconheceu por algum segundo. Buscou por sua mão gelada, segurou-a. Seus dedos não se moveram.



O caseiro Chico reparou nos lábios de Hilda um largo sorriso. Hilda Hilst morreu no dia quatro de fevereiro de 2004, às três e cinqüenta da madrugada, por falência múltipla dos órgãos. O corpo foi velado em um caixão branco, enquanto autoridades discursavam na capela do Cemitério das Aléias, em Campinas. O artista plástico Egas Francisco, um de seus amigos, acreditava que o caixão tinha que ser roxo ou vermelho e que ela detestaria tudo aquilo. “Se pudesse levantar e mandar todo mundo para onde ela gostava de mandar, mandaria mesmo. Mas eu mandei no lugar dela. E fui embora”.
Os dragões da independência seguiram o cortejo trajando fardas amarradas por um cinturão de fivela prateada, que reluzia a claridade daquele dia sem nuvens. Também usavam ombreiras com franjas e penachos no capacete. O corpo de Hilda foi enterrado às quatro horas da tarde. Entre as coroas e os buquês, um ramalhete de girassóis.


No dia seguinte, os raios de Sol batiam forte no pátio da Casa, como tantas vezes bateram. Todos os cômodos convergem para aquele lugar de chão revestido de pedras que se erguem ao centro, formando uma tímida fonte circular onde hoje uma torneira se detém seca e inutilizada. Ali, um dia, fluiu algo mais do que a água, símbolo da fertilidade e da origem da vida. Era onde o coração da Casa batia, o núcleo de tudo. Ao olhar para cima, verá o céu como um caminho para os pensamentos, para a imaginação ou para a contemplação. Dando um giro em torno de si, estará cercado por arcos em estilo romano, que guardam as sombras dos corredores e camuflam as portas e as passagens para o interior dos cômodos. Cada arco leva a um lugar. Cada lugar acomoda móveis e objetos, cúmplices das vidas que por lá estiveram. Cada um deles guarda um destino, um caminho, uma história.

Nota: A Casa do Sol foi herdada pelo sobrinho da escritora, Roberto Teixeira Cardoso, e por José Luís Mora Fuentes. Em agosto de 2005, foi fundada a Instituição Hilda Hilst – Casa do Sol Viva, que tem como objetivos divulgar a obra hilstiniana, construir um teatro, uma biblioteca com o acervo pessoal da autora e preservar a Casa do Sol. Os únicos moradores, depois da morte de Hilda, são cinqüenta e sete cães.

"Não me procures ali
Onde os vivos visitam
Os chamados mortos.
Procura-me
Dentro das grandes águas
Nas praças
Num fogo coração
Entre cavalos, cães,
Nos arrozais, no arroio
Ou junto aos pássaros
Ou espelhada
Num outro alguém,
Subindo um duro caminho
Pedra, semente, sal
Passos da vida. Procura-me ali.
Viva.”[6]





[1] CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999, p.35.
[2]De bem com a coisa. Jornal Folha de São Paulo, 31/03/1991
[3] Jornal de Hoje. Campinas, 14 de Janeiro de 1981. p5.
[4] Correio Popular, 1998.
[5] SILVESTRE, 2002.
[6] HILST, Hilda. Poesia XXII In: _______. Odes Mínimas. São Paulo: Nankin Editorial, s/d