“Não há
silêncio bastante/ Para o meu silêncio”.
Hilda Hilst,
Roteiro do Silêncio, 1959
O teto era de
papelão, como tudo naquela casa. Por dentro era escura; por fora, branca. Sem
porta, sem janelas. Mas tinha passagem. Apenas uma, na frente, como nas pirâmides
egípcias. Pertencia a um ser de língua fina, ágil e espantosamente protáctil. Se
presa, sua longa cauda separava-se do corpo gelado e, ainda assim, mostrava
fortes contrações. Depois, a partir da parte restante, regenerava-se um coto
que não balançava, apenas curvava-se para o lado. Os dedos eram providos de
placas adesivas que tornava possíveis as seguras escaladas pelas paredes, onde
quase arrastava sua barriga lisa e deixava à mostra o áspero dorso. Seus olhos,
dois pontos negros, ausentes de qualquer expressão. Não era um monstro. Era uma
lagartixa. Hilda confeccionou um lar para ela e seus dois filhotes. Vivo havia
ido embora, e os répteis eram os alguns dos poucos hóspedes da Casa do Sol,
junto com os cães e o Índio, apelido que Hilda dera ao novo caseiro.
– Você é o
Índio – decretou ao empregado, que nada tinha a ver com indígenas.
Também fez
parte da sua “selva” Jefferson, um homem moreno e alto que aparentava ter menos
de trinta anos. Ele vendia coco em uma perua kombi no trevo da estrada Campinas-Mogi Mirim, que leva ao
condomínio. Sua curta estadia na Casa teve como uma das finalidades conseguir
convencer os cachorros a comerem ração. Antes, eles só se alimentavam de arroz
com pescoço de frango, o que tornava os preparativos para suas refeições algo
demorado e cansativo. Afinal, naquela época existia cerca de setenta e cinco
animais no canil e mais quinze que perambulavam pela casa. A porta da frente
ficava aberta o tempo todo para eles, que entravam e saíam à hora que bem
entendessem, ora para latir no portão, ora para fazer suas necessidades. Por
mais frio que fizesse, a passagem continuaria aberta para o vento e os
companheiros caninos. Hilda não concebia uma casa sem cães. Com eles, não se
sentia sozinha. Nem quando estava doente queria que alguém ficasse ao seu lado.
O telefone ficava na cabeceira de sua cama para casos de emergência. Certa vez,
ela teve uma forte gripe e a vizinha e amiga Inês Parada foi até a Casa,
preocupada. Ela havia ficado deitada no quarto o dia todo. Inês encontrou o
portão e a porta abertos às dez horas da noite.
– Hilda, você não está bem,
está quente.
– Não, está tudo bem.
– Eu vou ficar aqui. Não estou
tranqüila.
– Não, pode ir, estou bem.
Prometo que, se eu ficar mal, eu te ligo. Não é necessário ficar aqui porque eu
não vou conseguir dormir com você aí sentada na cadeira, olhando pra mim.
Inês sorriu. Voltou para a
casa e dormiu com o telefone sem fio ao lado. Mas ele nunca tocava à noite. Ela
ligava ao amanhecer, com os questionamentos mais inusitados:
– Inês, como será isso do não
ser?
– Isso é coisa que se pergunte
às oito horas da manhã? – respondia, bem-humorada.
Hilda não parou de se
questionar sobre “não ser”. Buscava uma reposta definitiva. Muitos amigos
haviam morrido, entre eles o escritor gaúcho Caio Fernando Abreu. Caio faleceu em Porto Alegre, no hospital Menino
de Deus, no dia 25 de
fevereiro de 1996. Desde que saiu da Casa do Sol, continuou se correspondendo
por cartas e fazendo visitas à amiga.
Em 1974, Caio andava com os cabelos tingidos
de vermelho pelas ruas de sua cidade natal. Usava brincos imensos nas duas
orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas de pequenos espelhos. O estilo
era importado: viajou por um ano pela Europa: Espanha, Estocolmo, Amsterdã,
Londres e Paris. Em 1983 mudou-se para o Rio de Janeiro e, dois anos depois,
foi para São Paulo. Voltou à França em 1994, a convite da Casa dos Escritores
Estrangeiros, e descobriu ser
portador do vírus da AIDS. Foi quando decidiu retornar para a capital gaúcha e
viver com seus pais. A última
atividade de Caio era cuidar de roseiras, o que dava um sentido delicado para sua
vida. Havia combinado com Hilda que, quando um deles morresse iria aparecer
para o outro com um sinal vermelho. A cor indicaria que tudo estava bem. Hilda
teve uma visão de Caio no dia em que ele faleceu, às dez horas da noite. Viu
que ele usava um cachecol no pescoço, com uma fita vermelha. O vermelho da
vida.
“Eu abracei o
Caio, muito, e disse: ‘Nossa, como você está bonito, está jovem!’ Mas ninguém
acredita. Falam: ‘A Hilda é bêbada, uma alcoólatra, está sempre louca”[1].
No mesmo ano, a escritora sofreu a
primeira isquemia. A doença se caracteriza pela suspensão da circulação
sangüínea numa zona localizada do organismo. No caso dela, foi afetada a região
do cérebro responsável pela atividade motora, com maior dano na parte que
coordena o movimento dos lábios. A partir de então, ela passou a ter
dificuldade para articular o maxilar. Sua voz saía com esforço, num tom baixo e
suspirado.
Com a doença,
sentiu a degeneração do corpo. Percebeu-se envelhecendo. Ficou amarga como sua
mãe havia ficado quando doente. Bebia todos os dias, assim que o sol se punha.
Cinco eram as doses de que conseguia se lembrar. Agredia os amigos verbalmente,
como se assim pudesse descarregar suas mágoas, mas o conflito interior só
aumentava. Era o desespero de sentir que sua história chegava ao fim. Nunca
mais se apaixonaria. Por uma pessoa. Por uma idéia. Pela idéia de se apaixonar.
O álcool lhe proporcionava desabafo, às vezes finalizado por um choro
silencioso. No dia seguinte, acordava sem dores de cabeça, mas ainda num
processo crescente e acelerado de tristeza. Não sentia vontade de comer. Estava
anêmica. Hilda fumava três maços de cigarro por dia. Mora Fuentes pedia para
que ela parasse, quando ia visitá-la.
– Me deixa.
– Pelo menos
pára de chorar... – pedia emocionado.
Sabia que não
dava para consolá-la como qualquer outra pessoa. Por isso, preferia o silêncio.
Havia a levado a um médico neurologista, que lhe deu um leve estimulante, de
efeito demorado. Em questão de meses, seu apetite e sorriso voltariam a se
abrir. No ano seguinte, decidiu que não iria mais
escrever. Estar sendo. Ter sido.
seria sua última criação.
“Cores, calêndulas, anêmonas, espumas sobre um rio leitoso,
onde? Onde? Alguém se atirou no Ouse... quem? Não gostaria de morrer afogado
não, sei que se vê a vida inteira dizem, não quero ver minha vida inteira, nem
um pequeno trecho desta vida, sentir ainda seria alguma coisa, sentir o quê,
Vittorio? Um certo brilho uma certa cara, a descoberta de ter escrito: ‘Deus’?
Uma superfície de gelo ancorada no riso".
Não tinha mais o que dizer. Apenas o silêncio. A
expressão de seu rosto tornara-se ainda mais intensa. Somente ele poderia
falar. Seu olhar continha significados que se estendiam ao próximo de forma
clara e contundente. Nada poderia ser mais inquietante do que sua face, um
livro de histórias em que ela era a protagonista.
“Um frio comediante o tal Deus. Gostei quando escrevi isso.
Ancorado no riso, isso é bom, a descoberta de ser desprezado, de não ser, de
ser apenas um corpo envelhecendo, uma boca vazia agora silenciosa, não neste
instante silenciosa, mas uma eternidade silenciosas, e isso também de não ter
entendido nada, isso soa penoso e sinistro, mas não é...”
Hilda dizia que só queria morar em sua Casa até morrer e
receber os amigos. Havia cortado os cabelos na altura do nariz e usava
chapéus de palha para andar sozinha pelo jardim. “Eu
não tenho nenhuma expectativa de nada. Não me interessa mais o mundo da Terra”.
Ainda escreveu um texto de oito páginas sobre uma azeitona, chamado O Koisa, que começa assim: “À meia-noite
entrarei na empada”. Essa foi a sua última história. “Prefiro ficar pensando em
meu pai” – dizia. Estava debilitada pelos problemas de saúde, caminhava com
dificuldade e pouca desenvoltura. Porém, quando
falava de sua obra, nada restava daquela mulher fragilizada pela doença:
seu semblante se iluminava e a vida
resplandecia em seus olhos. A voz saía com esforço, mas vigorosa. Ela não se
preparava para dar entrevistas. As repostas eram espontâneas e verdadeiras,
como estas para a Revista da Folha.
“O que você
odeia fazer e continua fazendo?
Dar
entrevistas imbecis.
Qual a pior
cantada que você já deu?
Foi pedir à
figueira que ela desse frutos antes da época.
Já sentiu
vontade de morrer?
Estamos
vivos?” [2]
Sempre que era
entrevistada, Hilda chamava alguém para assistir. Certa vez, a TV Cultura estava gravando uma
entrevista na Casa do Sol, quando ela chamou diversas vezes pelo atual caseiro,
Francisco das Chagas, o Chico, que não a atendia. Depois de vários “Chico!”,
enfim, ele apareceu.
– Onde você
estava?
– Cuidando dos
cachorros.
Hilda
levantou-se e ergueu a saia, dirigindo-se a ele:
– Se fosse pra
isso você vinha, né?
Antes de vir
para a Casa, Chico trabalhava em uma firma como peão e fazia serviços na
chácara de um chileno, onde havia quatro cachorros. Ele não sentia medo dos
animais, o que chamou atenção do proprietário. Nunca havia encontrado um
empregado que não os temesse.
– Você
conseguiria trabalhar na chácara de uma escritora, com muitos cães? – perguntou
a ele.
Chegando à
Casa do Sol, Chico se surpreendeu: quinze cachorros saíram desatinados ao seu
encontro assim que pôs os pés na frente do portão. Nem imaginava que mais
sessenta o aguardavam no canil.
– De onde você
veio? – perguntou Hilda
– Rio Grande
do Norte, Natal – respondeu, com pesado sotaque nordestino, confirmando sua
origem.
– Você ganha
quanto no seu trabalho? Pago o dobro para você cuidar dos meus cachorros.
Chico era
quieto, só respondia o que lhe perguntavam. Hilda queria sua companhia.
Acomodada na poltrona baixa de forro amarelo, tinha o seu tronco envolvido pelo
encosto arredondado, que se estendia aos braços formando um semicírculo. Com um
copo de uísque na mão, ela pedia:
– Vem aqui
assistir ao jornal.
O caseiro
sentava-se acanhado no sofá. Fixava os olhos na TV. Mal se mexia. Poderia
escutar sua própria respiração.
– Você é mudo,
é? Não fala nada, não conversa...
– Não, Dona
Hilda, eu sou “quietão” mesmo.
Ela insistia
em fazer perguntas, mas ele não se soltava. Chico era analfabeto, sentia-se
intimidado em conversar com uma escritora.
– Bossa criado
mudo – ela satirizava.
O apelido
criou confusão quando Hilda pediu para ele buscar uma calçadeira que estava
no...criado-mudo. Ele achou graça. Pensou que fosse mais uma de suas piadas.
Ela insistiu séria.
– A calçadeira
está no criado-mudo, no meu quarto.
Continuou
parado, olhando para ela com ares de bom humor.
– Vááá, Chico!
Ele foi até o
quarto e voltou rindo:
– Olha, Dona
Hilda – respondeu entre risos – lá não tem criado mudo não, se tem já foi
embora.
Ela achou
muito engraçado. Percebeu que Chico realmente não sabia que era um móvel.
Levou-o até o seu quarto para mostrar-lhe do que se tratava e contou o que
havia acontecido para todos que iam visitá-la. Ele não entendia algumas
palavras e expressões devido às diferenças de linguagem entre o nordeste, onde
ele nasceu, e o sudeste do país.
Hilda
sentia-se incomodada por Chico falar: “vinhé”, para vier, “muitcho”, para
muito.
– Chico, quando
tiver um amigo meu aqui você não pode falar isso!
– Mas não é
errado, é que no nordeste a gente fala assim!
Ela anotava
todas as novas palavras e expressões que desconhecia e Chico lhe apresentava,
como a que usou certa vez, quando os cachorros estavam alvoroçados no canil.
– Chico,
porque eles estão latindo tanto?
– Eu dei a
ração, agora “cada-cá-que-queira”!
– O quê? Isso
é uma planta? Uma árvore?
“Cada-cá-que-queira”
era o modo apressado de ele dizer “cada qual que queira”. Mas nem sempre suas
palavras eram incorretas. Numa noite de inverno, Hilda sentou-se na sala de
jantar. A sala era decorada por um baú mesclado de verde-musgo, preto e
marrom-avermelhado, com puxadores de ferro nas gavetas. Em cima, o quadro de
Jesus com pescoço comprido e fino e tronco largo, segurando um peixe contra o
peito. Um halo laranja circunda sua cabeça de cabelos amarelos.
Chico acendeu
o fogo da lareira e ficou à sua frente. Em uma das repartições de pedra que se
estendiam acima, uma face esculpida de madeira de nariz fino, olhos grandes e
lábios semicerrados, prontos para dizer alguma coisa. A porta permanecia aberta
para os cachorros que circulavam livremente entre a Casa e o jardim. Por isso,
quanto mais escurecia, mais a temperatura caía dentro da Casa.
– Atchim!
– Hilda, você
está com estalicídio.
– O que quer
dizer estalicídio?
Chico explicou
que na região onde morava, era o mesmo que estar com coriza. Incrédula, Hilda
procurou a palavra no dicionário, e achou-a. Ficou surpresa. "Estalicídio", pensou, "onde é que esse
homem foi descobrir isso?". Ela não se conformava em ter um
empregado que não sabia ler. Contratou uma professora particular para lhe dar
aulas de português à tarde.
Na mesma
noite, Hilda entregava-lhe livros de sua autoria, pedia para que lesse um trecho
e explicasse o que havia entendido. Ele não conseguia elaborar comentários.
– Essa
professora sabe ensinar nada não, vou mandar ela embora amanhã.
– Mas em um
dia você já quer que eu esteja lendo o livro inteiro?
Ela insistia
para que Chico passasse o tempo livre debruçado em leituras, mas ele dizia não
conseguir se concentrar em outra coisa que não fosse o seu trabalho. Hilda
queria conquistar a sua confiança. Logo que acordava, tomava uma xícara de café
preto enquanto assistia ao jornal da manhã. Chamava-o para fazer companhia,
junto com os três cachorros que a rodeavam com lealdade; o gorducho Totó,
Cavalinha, malhada de branco e preto, e a geniosa Aninha tinham algo em comum:
todos eram pequeninos. Hilda os considerava os mais “coitadinhos”, devido à
desvantajosa estatura em relação aos outros guardiões da Casa. Ficavam ganindo,
implorando por pedaços do que se estava comendo. Aninha abanava o seu rabinho
negro com as pontas dos pêlos caramelo, retorcido para trás como um espanador.
– Eu vou bater
nela, Hilda, ela não te deixa comer! – brincava Chico
– Não fala
isso, eles entendem o que você diz. Olha a cara da Aninha olhando para você.
Hilda agarrava
a cachorra com as duas mãos, a acomodava em seu peito, de frente para Chico. Os
olhos de Aninha eram negros e redondos como se estivesse o tempo todo em
alerta, como duas jabuticabas graúdas e brilhosas saltadas na cara.
– Peça
desculpas a ela, Chico! Aninha – dizia olhando para seu focinho fino –, ele não
vai fazer isso – confortava a protegida.
Hilda não
queria que os cachorros fossem repreendidos. Deixava-os latir, sem reclamar do
barulho. Acreditava que eles compreendiam tudo o que ela dizia e sentia.
Considerava-os ótimos observadores.
Chico ficava
pouco para o café da manhã e logo se levantava para fazer seus serviços da
Casa. Hilda reclamava.
– Nem agora
você fica pra tomar um café, me larga aqui sozinha.
– Mas eu tenho
um monte de coisas pra fazer...
Ela levava a
mão esquerda embaixo do cotovelo do outro braço, que permanecia dobrado para o
alto e com os dedos juntos, imitando uma cobra naja. Chico saia sorridente
baixando a cabeça. Às vezes ficava para assistir ao jornal. Quando Hilda não
conseguia ouvir alguma coisa, perguntava a ele, que na maioria das vezes não
havia entendido.
– Nossa,
Chico, o que você está fazendo na frente da televisão? Você é daqueles criados
mudos e surdos que não escutam nada.
Chico ria. Ela
também. Gracejava enquanto dava a bronca.
– Não sei o
que você está fazendo aqui do meu lado. Fica bossa “mudão”, não conversa comigo
e não vê nada...
Com humor,
Hilda conseguiu conquistar a confiança do caseiro aos poucos. Chico trabalhara
como pedreiro em Natal e veio para São Paulo em busca de um futuro melhor.
Quando sua mulher voltou para o Norte com a filha, ele desabafava com Hilda,
fazendo assim estreitar os laços de amizade. Anos depois, encontraria um novo
amor, com quem teve duas filhas. A primeira coisa que Hilda perguntava era
delas. Assim que acordava, chamava-o e não queria saber dos cachorros ou da
limpeza do quintal.
– Como é que
estão as meninas?
Ela se
preocupava com as garotas e tinha afeição pelo caseiro. Por isso, fez a ele uma
promessa que foi cumprida:
– Chico,
quando eu for embora, vou deixar a casa onde moro para você. Um cantinho pra
cuidar das suas meninas.
Ele ficou
emocionado, mas uma tristeza ainda o incomodava: as saudades da família e da
filha que ficaram no Norte. Quando venceu o prêmio Moinho Santista em 2002, Hilda pagou passagens aéreas para ele
reencontrar as pessoas que amava. Ela participou dessa e de outras premiações
porque, durante seu trabalho, a amiga Inês Parada procurava saber pela Internet
quais os concursos literários que estavam acontecendo para inscrever as obras
de Hilda. Ela se prontificava a coletar todos os documentos e materiais necessários
para que a amiga concorresse aos prêmios. Quando a via, perguntava:
– Você tem
alguma notícia cintilante para mim?
– Estamos
vivas, Hilda.
– Fora essa.
Hilda não se
importava com as estatuetas que ganhava, dizia que na maioria das vezes eram
“só honrarias e nenhum para pagar
as contas”. Por isso, raramente comparecia aos eventos em sua homenagem.
“Eu sou uma escritora. O premiado foi o
livro, não fui eu; o que ganhou o prêmio não é mais eu, é algo que saiu de mim
e sobre que não tenho mais controle. Bem, gostaria de ser um político,
adestrada para ter uma exteriorização comedida e apropriada para cada ocasião,
mas não tenho esse controle. E se na hora do prêmio eu estiver triste ou
furiosa, mergulhada na mais profunda angústia e querendo mandar tudo às favas?”[3]
Ela mandou tudo às favas quando recebeu o de título de Cidadã
Campineira em 1997, projeto do vereador Romeu Santini. Naquela mesma ocasião, a Casa do Sol poderia ir a
leilão devido a uma dívida de cem mil reais de impostos com a prefeitura. A região
do Parque Shangri-lá, condomínio onde fica a Casa do Sol, passou a ser
considerada Zona em Expansão e não mais Zona Rural, o que fez com que o imposto
ficasse mais caro. Não havia como pagar aquela quantia.
“O que eu
tenho para vender? Os móveis não valem nada. Tenho uma gravura da Maria Bonomi.
Será que serve? Já quis fazer da casa um bordel geriátrico, talvez fosse a
solução”.[4]
Nessa época,
setenta cachorros moravam no canil, e não tinha para onde ir com todos eles. O
que lhe restava era receber o título de Cidadã Campineira, que ela se recusou a
buscar. Francisco Sellin, então presidente da Câmara dos Vereadores da cidade,
foi até a Casa do Sol. Hilda encontrou-o no portão. Sellin explicou que ela não
precisaria ir até o centro da cidade pra receber o título.
– Faremos uma
cerimônia na portaria do condomínio. Basta ir até lá que nós a honraremos com o
título.
– O senhor não
está percebendo que eu sou uma mulher sendo despejada com setenta cachorros?
– A senhora
deveria me agradecer por eu ter organizado tudo isso.
– Eu lhe
agradeceria se o senhor me chupasse a cona!
Para que a
Casa não fosse a leilão, foi realizado um abaixo-assinado “de protesto contra o
tratamento indigno que Campinas demonstra à importância nacional de Hilda
Hilst”, que trouxe entre outras firmas a dos escritores Paulo Coelho, Ignácio
de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, de Rodolfo Konder (então secretário
municipal de Cultura de São Paulo) e do dramaturgo Plínio Marcos.
As
dificuldades financeiras não cessaram. Em 2001, Hilda foi afastada do programa
de Artista Residente da Unicamp, que lhe rendia dois mil e cem reais por mês,
ficando apenas com a aposentadoria de setecentos reais. Gastava aproximadamente
mil reais com os quase setenta cachorros que habitavam o canil na época. Para
conseguir mais recursos financeiros, Mora Fuentes havia passado dois anos
batendo na porta de editoras para publicar a obra completa de Hilda.
– Mas são as
obras de Hilda Hilst! – insistia
Soube através
de Malu Mendes Fúria, jornalista do diário Valor Econômico, que a Editora Globo iria renovar os
autores. Isso aconteceu na mesma época em que Bruno Tolentino estava hospedado
na Casa do Sol. Bruno conhecia o editor Wagner Carelli, o que facilitou o
contato com a Globo. O contrato
foi fechado, em 2001, foi iniciado o trabalho de edição. Hilda recebeu um
adiantamento que lhe auxiliou em um dos momentos mais dramáticos de sua vida.
No dia três de janeiro de 2003, Hilda levantou-se da sua cama com sintomas de
labirintite e não conseguiu se segurar. Todos ouviram um barulho de impacto.
Olga , a mulher de Mora Fuentes, que também estava na Casa naquele momento, foi
correndo para o quarto. Ela estava no chão.
– O quê está
acontecendo, Hilda?
– Eu caí.
Devido à
colisão na lajota, havia fraturado o fêmur em três partes. Foi colocada uma
prótese de titânio no local. Ficou uma semana internada. Inês foi visitá-la
assim que voltou para a Casa. Entrou pela sala, passou pelo escritório. Hilda
reconheceu do quarto os passos da amiga vindo em sua direção.
– É a Inês.
Juntou os
dedos em uma expressão de quantidade e contou:
– Inês, levei
um tombo, mas um tombo!
Hilda ficou
meses andando apenas de cadeira de rodas. Depois de várias sessões de
fisioterapia, conseguia andar se apoiando em uma bengala de madeira avermelhada.
Mas parecia que nada havia acontecido. Ela continuava sorrindo. Seus cabelos
estavam ainda mais curtos e tingidos de loiro-escuro. Os ossos do pescoço
estavam salientes, mas o seu sorriso continuava vigoroso.
Alguns amigos telefonavam, e
ela não queria que a vissem daquele jeito. Falava com Lygia Fagundes Telles
diariamente. Certa vez ligou com apenas para fazer uma afirmação.
– Lyginha, a alma é imortal,
nós somos imortais.
E perguntava à amiga Ana Lúcia
Vasconcelos do outro lado da linha:
– Ana, estou envelhecendo, e
você?
– Eu também, Hilda.
Ana Lúcia queria visitá-la,
mas a resposta era sempre a mesma:
– Deixa o Zé (Luís Mora
Fuentes) chegar de São Paulo que você vem.
Mora Fuentes estava de volta à
Casa desde 1998. Às vezes levava Hilda ao médico, em São Paulo. Ela ficava em
seu apartamento, onde não podia ouvir os cantos dos pássaros, o barulho do
vento batendo nas folhas das árvores, cachorros do canil latindo e uivando
assim que amanhecia. Foram a uma loja e resolveram o problema: compraram um
relógio em que, de hora em hora, imitava o piado de um pássaro diferente:
currupião, curió, quero-quero, bem-te-vi, tucano, jaó, curiango, sabiá
laranjeira, pintassilgo, galo-da-campina, juruva, uirapuru. Quando voltou para
a Casa, levou-o com ela, para se juntar ao coro da mata. Ela passava a maior
parte do tempo no quarto. Uma hora. Duas. Três. Um relógio dourado avisava em
volta de seu eixo:
‘MAIS
TARDE
DO
QUE
SUPÕES’
Na sua frente, na estante de
pedra da lareira de seu quarto, estava um conjunto de bateria completa em
miniatura, presente de aniversário de Gisela Magalhães, sua amiga desde a
juventude. Gisela conheceu Hilda na década de 1950, época em que ela contava a
todos o seu desejo de ser baterista. O presente veio em 2000, de forma
bem-humorada, quando a escritora estava com setenta e dois anos. Naquele ano,
Gisela coordenou a exposição Hilda Hilst
70 anos, no SESC Pompéia, em São Paulo, sobre a vida e a obra da autora.
Foi construída uma parede forrada por uma foto da figueira do jardim da Casa do
Sol em um entardecer de nublado horizonte. A foto em preto-e-branco continha,
em toda a sua extensão diversas imagens de Hilda em tom sépia. No canto
direito, uma entrada idêntica à que leva para o seu escritório: baixa, em forma
de arco e estreita, como as que levam a um mundo desconhecido, ou a um universo
imaginário.
Na véspera de
Natal de 2003, a saúde de Hilda estava ainda mais fragilizada. Sentia muita
dificuldade para andar. Não era necessário falar. Não havia o que dizer. Hilda
estava lúcida. Não puxava assunto para ser sociável. Era espontânea e
verdadeira. Falava o que sentia, respondia o que lhe perguntavam. Agora não
tinha o que falar. Não saía da cama, não queria comer. Apenas fazia um sinal
positivo com o polegar, para indicar que estava tudo bem. Os amigos sentiam que
era uma despedida. Sua reação não era a de quem iria viver ao longo do novo ano
que se aproximava. A testa quente anunciava que estava febril. Mora Fuentes a
levou ao hospital. Passaram a noite natalina sob a luz fluorescente do quarto,
onde Hilda ficou internada por horas.
No último dia
do ano, Inês foi visitá-la ao entardecer. Estava sentada em sua cama. A
cachorra Aninha acomodava-se em seu colo, sendo lentamente acariciada. Aninha
dormia em seus pés todas as noites. Roncava tão alto e grave que, se alguém a
ouvisse do corredor, poderia imaginar que se tratava de um animal de estatura
dez vezes maior do que a da nanica pincher.
Hilda estava
muito magra. Os seus braços apareciam mais longos por estarem muito finos, os
ossos de seu ombro apareciam delineados sob a larga blusa branca que vestia.
Estava toda de branco.
– Feliz ano
novo, Hilda – desejou Inês.
Continuava
quieta. A amiga quebrou o silêncio com uma brincadeira.
– Você não
quer um cigarrinho?
– Não
– E um
vinhozinho?
– Não.
– Hilda, assim
você vai ser aquilo que sempre quis: uma santa. Não bebe, não fuma e não fode.
Hilda riu.
Inês continuou se dirigindo a Mora Fuentes, que estava ao seu lado.
– Desse jeito
você vai ter que pegar ela levitando aqui pelo quarto.
Quando foi
interna no colégio Santa Marcelina, dos sete aos treze anos de idade, Hildinha
adorava tomar um pouco do vinho que o Monsenhor Ladeira guardava na sacristia.
Um dia foi pega por ele com a boca na botija:
– Hilda, você
não pode tomar o meu vinho.
– Mas eu tô
tomando só um pouquinho! – defendeu-se, fazendo um gesto minorativo com os
dedos polegar e indicador.[5]
Depois, teve
que confessar o feito às freiras. Seu castigo sempre era dar várias voltas pelo
corredor do colégio enquanto todos comiam no refeitório. Hilda vestia sapatos
pretos e arredondados, como o de bonecas. Suas pernas finas eram cobertas por
meia-calça. No final da década de 1940, seriam consideradas as “mais belas
pernas do Clubinho de São Paulo”, pelo modernista Flávio de Carvalho.
Por volta das
duas horas da madrugada do dia dois de janeiro de 2004, Hilda caiu e fraturou
novamente o fêmur. Chamaram uma ambulância, que a levaria para sempre de sua
Casa. Passando pela porta da sala, um vaso de alfazema no pilar de entrada da
varanda exalava um cheiro de céu. Dali,
o portão parecia tão pequeno, tão... Os coqueiros já haviam crescido, crescido
muito. Ultrapassaram a altura do muro e das árvores que os cercam no jardim.
Entre os espaços de suas finas sombras, a tênue claridade da noite iluminava a terra
clara, que de longe parecia areia branca. Entre o claro e o escuro, a
ambulância passou o portão. Agora, de perto, ele era maior. Os dois círculos de
sua base pareciam dois tambores. Nenhum cascalho cor-de-rosa cobria o chão.
Todos já haviam sido levados pelo tempo. Os coqueiros ficaram para trás. Todas
as outras árvores. O balanço, a figueira, os dois guardiões de madeira da porta
de entrada. E os retratos na parede da sala de jantar. Ali, os olhos dos seus
amores e amigos estão cheios de lembranças. Dante olha para o horizonte, usando
um chapéu de aba curta, e ostenta um cavanhaque avantajado. Toledo, também de
chapéu, apóia o dedo indicador na boca em um tom pensativo, com os primeiros
botões da camisa abertos. Lygia usa um colar de pedras redondas delicadamente
vermelhas, mas o que chama atenção é o seu olhar fraternal e o sorriso
expressivo que guarda nos lábios. Numa foto azulada, Lupe Cotrin mantém um ar
misterioso enquanto um lado da franja ameaça cair-lhe nos olhos. Ana Lúcia,
sentada numa cadeira, apóia um dos braços no encosto e olha para a câmera num
gesto espontâneo. Caio, vestido de terno e gravata de grandes bolas brancas, já
desamarrada, sorri verdadeiramente. Jurandy tem o rosto mesclado entre sombra e
luz na foto em preto-e-branco, destacando seus cabelos negros e cacheados.
Almeida Prado está compenetrado em uma leitura. Sentado numa poltrona, apóia o
livro nas pernas e mantém o olhar baixo. Seu rosto é cheio e sua pele, clara e
luminosa. Olga, de frente, cabelos longos e vermelhos, olhos azuis e fixos. Em
outra foto, Gisela Magalhães, em pé, fita um Mora Fuentes, sentado, que segura
um cigarro com o braço estendido para outro lado. O lado onde Hilda está, com o
rosto semi-iluminado e o olhar baixo. Um olhar que não se direcionaria mais aos
seus tão queridos livros. Nem aos cachorros do canil, nem aos outros quinze,
que foram presos dentro da casa para não escaparem enquanto a ambulância saía.
Ficaram ali inquietos, disputando um espaço entre os vitrais das janelas. Ela
estava indo embora.
Hilda foi
levada ao Pronto-Socorro da Ortopedia do Hospital de Clínicas da Unicamp, onde
ficou internada por trinta e seis dias. Inês Parada foi visitá-la na Unidade de
Terapia Intensiva do hospital. Achou aquele lugar “desumano e surrealista como
um shopping center”, onde ao entrar
perde-se a noção do tempo devido à luz artificial. Percebeu que os “internos se encontravam no limiar da grande
questão de ser ou não ser”. Hilda estava com tubos na boca e no nariz.
Ela a chamava com esperanças de um sinal.
– Hilda,
Hilda...
Inês estava
comovida. Teve a impressão de que a amiga a entreolhou com lentidão.
– Hilda, é a
Inês. Eu gostaria que você voltasse para a Casa do Sol. É a Inês...
Queria
acreditar que Hilda a reconheceu por algum segundo. Buscou por sua mão gelada,
segurou-a. Seus dedos não se moveram.
O caseiro
Chico reparou nos lábios de Hilda um largo sorriso. Hilda Hilst morreu no dia
quatro de fevereiro de 2004, às três e cinqüenta da madrugada, por falência
múltipla dos órgãos. O corpo foi velado em um caixão branco, enquanto
autoridades discursavam na capela do Cemitério das Aléias, em Campinas. O
artista plástico Egas Francisco, um de seus amigos, acreditava que o caixão
tinha que ser roxo ou vermelho e que ela detestaria tudo aquilo. “Se pudesse
levantar e mandar todo mundo para onde ela gostava de mandar, mandaria mesmo.
Mas eu mandei no lugar dela. E fui embora”.
Os dragões da
independência seguiram o cortejo trajando fardas amarradas por um cinturão de
fivela prateada, que reluzia a claridade daquele dia sem nuvens. Também usavam
ombreiras com franjas e penachos no capacete. O corpo de Hilda foi enterrado às
quatro horas da tarde. Entre as coroas e os buquês, um ramalhete de girassóis.
No dia
seguinte, os raios de Sol batiam forte no pátio da Casa, como tantas vezes
bateram. Todos os cômodos convergem para aquele lugar de chão revestido de
pedras que se erguem ao centro, formando uma tímida fonte circular onde hoje
uma torneira se detém seca e inutilizada. Ali, um dia, fluiu algo mais do que a
água, símbolo da fertilidade e da origem da vida. Era onde o coração da Casa
batia, o núcleo de tudo. Ao olhar para cima, verá o céu como um caminho para os
pensamentos, para a imaginação ou para a contemplação. Dando um giro em torno
de si, estará cercado por arcos em estilo romano, que guardam as sombras dos
corredores e camuflam as portas e as passagens para o interior dos cômodos.
Cada arco leva a um lugar. Cada lugar acomoda móveis e objetos, cúmplices das
vidas que por lá estiveram. Cada um deles guarda um destino, um caminho, uma
história.
Nota: A Casa
do Sol foi herdada pelo sobrinho da escritora, Roberto Teixeira Cardoso, e por
José Luís Mora Fuentes. Em agosto de 2005, foi fundada a Instituição Hilda Hilst – Casa
do Sol Viva, que tem como objetivos divulgar a obra hilstiniana, construir
um teatro, uma biblioteca com o acervo pessoal da autora e preservar a Casa do
Sol. Os únicos moradores, depois da morte de Hilda, são cinqüenta e sete cães.
"Não me procures ali
Onde
os vivos visitam
Os
chamados mortos.
Procura-me
Dentro
das grandes águas
Nas
praças
Num
fogo coração
Entre
cavalos, cães,
Nos
arrozais, no arroio
Ou
junto aos pássaros
Ou
espelhada
Num
outro alguém,
Subindo
um duro caminho
Pedra,
semente, sal
Passos
da vida. Procura-me ali.
Viva.”[6]