Cap. 6 - Despedida


 “Sinto-me livre para fracassar”
Geoges Bataille, escritor francês
(1897-1962)

O relógio do tamanho de uma porta não mostrava mais as horas, a estátua do século XXVII de Santa Thereza, com os dedos das mãos entreabertos, não estendia mais seus braços convidativos com a tinta descascada, o nu feminino pintado por J.Toledo não decorava mais a parede. Esses objetos todo já não estavam mais na Casa do Sol. Haviam sido vendidos. Quando as dificuldades financeiras aumentaram, Hilda decidiu se desfazer também da casa de Bedecilda, sede da Fazenda São José, abandonada há vinte anos. O reboque se soltava em generosas lascas, deixando os tijolos expostos e a maioria das telhas havia abandonado a cobertura. Todos vidros estavam estilhaçados. Nenhum comprador queria reformá-la: as propostas recebidas previam a demolição do prédio, que estava em ruínas.
Hilda ficava desapontada com quem não percebia que se poderia aproveitar a casa onde passara nos finais de semana em sua juventude, quando vinha de São Paulo. Hilda guarda uma foto sua na sala da casa aos dezoito anos, sentada em uma poltrona de estampa de folhas. Suas pernas longas e finas estão cruzadas. A que está por cima da outra é clareada pela luz que incide pelas portas de vidro ao seu lado direito e também ilumina sua mão, que segura com firmeza o braço da poltrona. Sua mãe a havia comprado a fazenda em 1942, quando Hilda tinha doze anos. Era o lugar em que passava as férias em sua adolescência e onde havia morado por três anos enquanto esperava a Casa do Sol ficar pronta. A casa de Bedecilda foi construída no início do século XX com pesados tijolos de argila. Pintada toda de branco, tinha janelas altas de madeira e três mangueiras imponentes recepcionavam as visitas. Hilda não queria que aquele lugar deixasse de existir. Mesmo precisando de dinheiro, recusou as ofertas que apareceram com a proposta de demolir a casa. Teve a idéia de oferecê-la à Unicamp e conversou com seu amigo, o então reitor da universidade, José Aristodemo Pinotti.
Numa tarde de domingo de 1985, Pinotti foi à Casa do Sol acompanhado de sua mulher, Sueli, apresentar uma compradora para a casa: Inês Parada. Ela se encantou com a antiga sede e estava disposta a reconstruí-la. A casa estava em péssimas condições. Mesmo assim, Inês não conseguia enxergar a destruição e a visualizava como um dia viria a ser.
Quando entrou na Casa do Sol, foi apresentada a Hilda na cozinha. Ela nunca ouvira falar em Hilda Hilst. Dante preparava um café preto enquanto se discutiam os preços. Entre um gole e outro, o negócio foi fechado. Inês ficou curiosa em saber o que aquela mulher de cabelos vermelhos, que vestia batas indianas, escrevia. Sua amiga Sueli Pinotti lhe emprestou o livro A Obscena Senhora D. Ao ler, percebeu a universalidade da obra. A Senhora D é uma mulher que descobre que não é mais jovem, “que se sente, mas que não está abandonada, não por uma pessoa ou por alguém, mas um abandono natural da vida provocado pela rotina e pelo tempo que gastas as relações por mais intensas que elas sejam”. Inês ficou encantada com a sinceridade contida no texto. Percebeu que a literatura de Hilda Hilst desconhecia o temor de descrever com exatidão o que foi sentido, sem se preocupar com as conseqüências. Sueli lhe emprestou outro livro, agora Poesia. Inês se reconheceu. Acreditava, que do mesmo modo que a mulher de trinta anos é considerada balzaquiana (devido ao romance A mulher de trinta anos, de Balzac), a de cinqüenta deve ser considerada hilstiniana.

Assim que a reforma da antiga casa de Bedecilda foi concluída, convidou Hilda para um jantar de inauguração. As janelas permaneceram as mesmas, mas agora tinham novas vidraças. Os troncos das árvores não estavam mais camuflados pelo mato e podiam ser vistos desde sua raiz. As paredes, que passaram vinte anos no silêncio, voltavam a ecoar vozes e alegria. Hilda foi ao terraço, onde duas compridas mangueiras se abraçavam à sua esquerda. Enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto, comentou com sua nova amiga Inês Parada:

– É muito emocionante ver essa casa de novo com vida.

Hilda queria envelhecer em paz, sem se preocupar muito. Tinha medo de ficar amarga.[1]Aos 57 anos, se sentia velha e se preocupava com o dinheiro. Passava por dificuldades financeiras e tinha medo de que isso lhe afetasse ainda mais. Chorou pela manhã, no dia 21 de setembro de 1987. Havia escrito por 37 anos e sentia como se nada tivesse produzido.[2] Enquanto tomava um copo de suco de laranja, seus olhos percorriam as folhas do jornal do dia. Uma matéria sobre a escritora francesa Régine Deforges, autora do best-seller A bicicleta azul, informava que ela faturou naquele ano dez milhões de dólares com a venda do livro. “Eu não acredito” – Hilda disse – “Eu sou maravilhosa, mas escrevo em língua portuguesa e essa puta ganhou milhões”.[3] Estava decidida a iniciar a fase erótica de sua obra.
Ria, ria muito enquanto escrevia. Mostrava para Iara, davam muitas risadas. Ia à casa de Inês. Sentava em uma cadeira de palha cercada por quatro jabuticabeiras e lia um trecho. Gargalhavam. Era O caderno rosa de Lori Lamby, a história de uma criança de oito anos que escreve em seu diário suas fantasias sexuais. “Eu queria que a cidade inteira risse comigo. Com doçura, com riso, finalmente eu me tornarei – espero – consumível”.[4] Além disso, chegou à conclusão de que existiam três soluções para quem pensa em excesso: “o primeiro é o suicídio, mas é dificílimo você se matar, eu li tudo sobre o suicídio. O segundo é o alcoolismo, mas não dá para beber o dia inteiro. O terceiro é o riso”. Considerava o riso o mais compatível com o seu temperamento e lembrou-se de que fazemos os mesmo movimentos peristálticos quando rimos e quando comemos. “Ao invés de comer alguém, eu rio”.[5] Mesmo assim, dizia que era difícil escrever pornografia com sessenta anos de idade, “quando você esqueceu praticamente tudo”.[6]
Como de costume, mostrava os textos inéditos para os amigos que iam visitá-la. A mesa da sala de jantar estava rodeada de admiradores, atentos para a novidade. No retrato pendurado na parede, Apolônio observava a todos. Sua orelha, levemente saliente, aparece inteira devido ao corte alto dos seus cabelos, ostentados por uma franja volumosa penteada para trás. Os olhos, sérios, sugerem sedução e intensidade. Ao seu lado, Bedecilda sorri com os olhos. Um longo colar de pérolas enfeita seu colo. Sua boca pequena ameaça demonstrar alegria e sua cabeça se inclina delicadamente ao encontro de seu amor.
Sentada na cabeceira da mesa, numa cadeira de encosto largo e alto de madeira escura que acomodava toda a sua coluna e cabeça, Hilda leu um trecho do seu novo livro imitando a voz de uma criança:

“Papi não está mais triste não, ele está é diferente, acho que é porque ele está escrevendo a tal bananeira, quero dizer a bandalheira que o Lalau quer. Eu tenho que continuar a minha história e vou pedir depois pro tio Lalau se ele não quer pôr o meu caderno na máquina dele, pra ficar livro mesmo. Eu contei pro papi que gosto muito de ser lambida, mas parece que ele nem me escutou, e se eu pudesse eu ficava muito tempo na minha caminha com as pernas abertas mas parece que não pode porque faz mal, e porque tem isso da hora. É só uma hora, quando é mais, a gente ganha mais dinheiro, mas não é todo mundo que tem tanto dinheiro assim pra lamber.”[7]

Risos. Gargalhadas. Léo Gilson Ribeiro e Ana Lúcia Vasconcellos sérios. Olhavam as bocas abertas e os dentes expostos à sua volta. Hilda percebeu a apatia dos amigos.

– E então? Vocês não estão achando engraçado? Não é gozadíssimo?
– Não – responderam os dois, abalados.

Ana Lúcia acreditava que aquela obra seria a ruína da amiga. Para ela, a história da menina de oito anos escrevendo fantasias sexuais em seu diário iria destruir a obra que Hilda Hilst havia escrito até então. Léo Gilson ficou anos sem falar com ela. Tentou convencê-la a desistir de escrever erotismos:
– Pensa no Kafka, que demorou anos para publicar um livro[8] – insistia sem êxito.
Considerou O caderno rosa de Lori Lamby uma ofensa frente aos elogios que ele, como crítico literári,o havia feito até então à escritora. Considerava que ela produzia “a mais abissal e deslumbrante prosa poética do Brasil, posterior à genialidade de Guimarães Rosa”.[9] Grande admirador de seu trabalho, dizia que sua obra era “demasiado ampla, rica, complexa e atemporal para ser incluída em qualquer rótulo, por mais abrangente que seja”.[10] Depois que essa abrangência alcançou o estilo erótico, pornográfico ou intitulado por alguns como “pornô-chique”, houve quem acreditasse que ela havia enlouquecido. Hilda perguntou a um repórter que foi entrevistá-la na Casa do Sol:
– Por que você veio?
– Porque acham que você está louca.
Quando foi à capital do Estado assistir à defesa de uma tese de doutorado em semiótica sobre a obra hilstiniana, sentiu que foi apontada como louca. A aluna da PUC São Paulo Clara Silveira Machado passou treze anos pesquisando para escrever o trabalho chamado A língua delirante de Hilda Hilst. Delírio. Distúrbio mental caracterizado por idéias que contradizem as evidências e são inacessíveis à crítica. Exaltação do espírito. Desvairamento. A tese afirmava que Hilda “simula (em grande parte das narrativas) situações delirantes que têm referências no registro da psicanálise”.[11]
Hilda sentou-se na primeira fileira da classe com discrição, atenta para ouvir. Paranóia, esquizofrenia. Palavras que vinham da banca examinadora. Olhavam para ela. A apontavam. Sentiu-se incomodada. Olhou para trás, como quem não quer acreditar. Devia ter algum louco naquela mesma direção, não ela. Mas era.
– Hilda, é a primeira vez no departamento que se faz uma tese sobre a obra de uma pessoa viva. – comenta Clara Silveira Machado, ao término da defesa de seu trabalho.
– E você pensa mesmo que eu estou viva?
Antes de sair, completa:
– O camburão já está na porta com a equipe médica?[12]

Uma foto de Hilda com seis anos ilustra a contracapa de O caderno rosa de Lori Lamby. Abaixo, a frase: “Ela foi uma boa menina”. Um ano depois de tirar aquela foto, Hilda entrou para o Internato Santa Marcelina, em São Paulo, onde fazia o papel de anjo nos teatros de final de ano. Depois, Hildinha passou a representar a avozinha-lobo do Chapeuzinho Vermelho. Puseram talco nos seus cabelos e no seu rosto, e óculos grandes com aro de metal. Nas suas unhas, garras feitas de cartolina preta. Tudo porque Hildinha não sabia pedir desculpas. Nem sempre era uma “boa menina”, mas verdadeira como toda criança.
Depois que cresceu, Hilda não se daria bem com menores de doze anos. Não entendia porque deveria achá-las “engraçadinhas” – “Elas são tão cruéis”, justificava.
Acreditava que eram “seres verdadeiros demais”, e não tinha convenções para com elas. Perto de crianças, os assuntos não eram tratados como tabus, mas expostos com naturalidade. A amiga e escritora gaúcha Neli Dutra se assustava com tanta liberdade. Neli era vizinha de Hilda quando morava no Edifício Bocaína, na Alameda Santos, Jardins. Levava seus filhos à Fazenda São José para passar o final de semana, na época em que Hilda criava cavalos nas terras de sua mãe. Ela havia comprado um majestoso garanhão para procriar com as éguas que estavam no cio. Logo de manhã, os filhos de Neli, Rita e Beto, correram rumo à cachoeira e se penduraram na cerca do piquete para ver a cena. Ela chegou esbaforida e expulsou as crianças de lá. Hilda intercedeu calmamente:
– É assim mesmo, o sexo faz parte do processo de procriação, a urgência da preservação da espécie. Não há problemas das crianças presenciarem uma das tantas cenas bonitas produzidas pela natureza.[13]

Hilda não tratava crianças de igual para igual, nem afinava a voz para se dirigir a elas, como a Daniel, filho de Mora e Olga, que ia com os pais nos finais de semana à Casa. Daniel adorava o campo, principalmente o jardim, onde passava a maior parte do tempo com o amigo Bruno Baenderek brincando de Comandos em Ação. Dezoito anos depois, quando Mora remexia no quintal para plantar alguma coisa, sempre encontrava pequenos super-heróis de plástico cravados na terra. Afinal, os prisioneiros precisam ser enterrados. Daniel tinha cinco anos quando Hilda estava escrevendo O Caderno Rosa de Lori Lamby e não o poupava de ouvir trechos do livro, que lia para os visitantes. Todos gargalhavam sentados na mesa do pátio interno após o café da tarde. Ele achava graça e entendia, com a ingenuidade de Lori.

“O sapo Liu-Liu tinha muita pena do seu cu. Olhando só pro chão! Coitado! Coitado do cu do sapo Liu-Liu! Então ele pensou assim: vou fazer de tudo pra que um rainho de Sol entre nele, coitadinho! Mas não sabia como fazer isso. Conversando um dia com a minhoca Léa, contou tudo pra ela. Mas Léa não sabia nada de cu. Vivia procurando o seu e não achava”.[14]

Depois de Lori, Hilda decidiu que ia escrever mais nada, “a não ser grandes e espero adoráveis bandalheiras”, como seus três livros seguintes: Bufólicas, Contos D’Escárnio/Textos Grotescos e Cartas de um Sedutor. Para isso, precisou aumentar o vocabulário obsceno, descobrindo novas nomenclaturas para os órgãos sexuais. Procurava em dicionários e enciclopédias novas possibilidades de abordar o tema e se questionava sobre o verdadeiro sentido da obscenidade. “O que é OBSCENO? OBSCENO? Ninguém sabe até hoje o que é OBSCENO. OBSCENO pra mim é a miséria, a fome, a crueldade, a NOSSA época é obscena”.[15]
Os livros da fase erótica tiveram suas edições esgotadas e traduzidas para outros idiomas. Il quaderno rosso di Lori Lamby em 1991, na Itália, e Contes Sarcastiques (Fragments érotiques) em 1994, na França, onde o crítico literário Christian Kazandjian escreveu no jornal Révolution que o livro era um “salutar soco na cara que seduz e espanta”.[16] Hilda confirma a intenção de chocar o público e estimular os questionamentos existencialistas.

“Eu gostaria que os meus livros eróticos chocassem a um ponto que as pessoas vomitassem várias semanas e começassem a repensar tudo novamente. Quem eu sou? Para que eu existo? Como é o meu comportamento diante do outro? O que verdadeiramente eu sinto diante da vida e da morte?”.[17]

Apesar do sucesso, Hilda não recebeu o retorno financeiro do prestígio. Prestígio vem de “praestigiare”, em latim, que significa ilusão. Tentou contato com a editora italiana Sonzogno para saber do seu pagamento de direitos autorais, mas eles tinham mudado de endereço e não conseguiu o novo[18]. Declara que não escreveria basicamente por dinheiro. “Nunca ter sido lida, isto é o que me perturba”[19]. Acreditava que possuía o “poder de perder”, expressão que traduz o significado da palavra “Potlatch”, nome de uma festa de ameríndios em que eles exibiam todos os seus bens materiais e, depois, ateavam fogo. Para eles, quanto mais se destruísse as riquezas, mais poder se detinha. “Estou continuamente exibindo as minhas riquezas, entregando o que tenho de melhor, mas os outros jogam fora o que eu os ofereço. Adquiri com o tempo esse ‘poder de perder’”[20].
Dante e Iara saíram da Casa e foram morar em São Paulo, em 1990. Hilda não ficou sozinha, porque neste mesmo ano conheceu Jurandy Valença, estudante de jornalismo de Maceió que teve contato com seus livros por meio de Patrícia Vasconcelos, uma amiga professora da Universidade Federal de Alagoas. Encantou-se por A Obscena Senhora D e Sobre a tua grande face. A prosa e poesia, muito intensa e experimental, fizeram-no sentir a potência da escrita hilstiniana, tornando-se um grande admirador de sua obra. No final dos anos 90, veio para São Paulo. Entre um dos objetivos, conhecer a autora. Seu amigo Nilton Rezende, poeta alagoano, conhecia Lygia Fagundes Telles, grande amiga de Hilda que lhe passou o telefone de contato. Jurandy ligou três vezes até conseguir agendar uma visita. Conseguiu-a para novembro de 1990. Ela o esperava com vestido listrado de branco e rosa e um chapéu de palha na cabeça. Houve uma empatia imediata entre os dois. Jurandy tinha vinte anos e tomou o seu primeiro porre de uísque Grat’s. A partir de então, todo final de semana freqüentava a chácara. Hilda o convidou para morar com ela e ajudá-la como secretário. Jurandy se encantou tanto com o universo literário que começou a produzir poemas. Mostrou-os para a escritora dar sua opinião.
– Uma droga.
Jurandy não desistiu. Decidiu mergulhar nas páginas dos livros da biblioteca particular de Hilda, com mais de mil títulos, e a escrever escondido dela. Depois de conseguir produzir poemas dos quais se orgulhasse, tomou coragem e ofereceu para Hilda ler. Todos os que ela aprovou fizeram parte do seu primeiro livro de poesias. O dinheiro foi acabando e, de Grat’s, passaram a beber vinhos baratos e a jantar “miojo”. Jurandy ficou na Casa até 1993, depois voltava para visitas.


Hilda abriu a gaiola para que o pássaro de estimação saísse. Ficou no pátio olhando para as folhagens das árvores que o cercavam, esperando que o animal voasse liberto por ali. Estava muito comovida, chorava com facilidade. Andou pela Casa chorando. Saiu ao jardim. O entardecer era visto por entre os troncos dos pinheiros que agora cercam o local. Foi até a figueira, falou com a árvore. Percebeu que ela também estava velha, cheia de parasitas no tronco e refletiu sobre a sua própria mortalidade.

Sentia pavor de perder os dentes, porque associava esse fato à idéia da morte. Tinha pesadelos com eles. Sonhou que perdeu uma ponte postiça e outro dente com pequenas raízes, muito limpo, que foram lançados em um recipiente de ladrilho. Havia uma caveira ali, com a arcada dentária completa. Escreveu em crônica para o jornal Correio Popular: “Bressani, meu dentista genial, tenho pensado tanto naquela nossa insondável questão de ‘por que os dentes duram na caveira e caem se a gente dura mais que a vida inteira?”[21] Sobre isso, articulou a seguinte frase em Com os meus olhos de cão e outras novelas: "Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem”.
Em 1991, Hilda não tinha dinheiro para tratar dos dentes. Contrairia uma gengivite crônica em 1998, que a levou a perder alguns da arcada dentária superior. Levava a mão à boca para falar ou rir mas nem sempre o humor vencia as suas angústias e se lamentava pela obscuridade de seu trabalho.
Ela estava sem carro, dependia das caronas da vizinha Inês Parada até mesmo para comprar cigarros. Ela não via aquele gesto como uma ajuda. Os minutos que as duas estavam no carro indo à farmácia, ao médico ou ao supermercado eram minutos de profundo conhecimento que Hilda lhe transmitia. Indicava-lhe leituras como A negação da morte, O despertar dos mágicos, Viagem ao centro da Terra. Para ela, a escritora era “um prodígio de ser humano diferenciado presente, com reverência pela vida, sabedoria e cultura”. Sentia-se privilegiada por conseguir conquistar sua confiança. Inês considerava que quem ganhava com a atenção que dava à amiga era ela mesma.
Naquela época, Hilda recebeu em sua casa o Morto, apelido de Edson Costa Duarte, estudante de Letras que estava escrevendo uma tese de mestrado na Unicamp sobre Clarice Lispector e começou a estudar também a obra de Hilda Hilst. O Morto tinha características de um hindu: barba preta e comprida, olhos amendoados e olhar penetrante, pele tom moreno-oliva, cabelos escuros e encaracolados, presos em um rabo. Tinha fases de euforia, quando não conseguia dormir e passava a noite com algum tipo de atividade que o fizesse gastar as energias. Numa dessas fases, a escritora estava hospedada na casa de Mora Fuentes para fazer exames médicos em São Paulo, quando Morto telefonou.
– Hilda, estou sentindo o clima da Casa muito estranho, posso fazer um ritual “Potlatch”?
Ela concordou. Morto se despiu, pegou algumas roupas, objetos plásticos, documentos, juntou-os próximos à varanda e ateou fogo. Como as chamas formaram altas labaredas, os seguranças do condomínio foram ver o que estava acontecendo. Morto decidiu continuar o ritual “Potlatch” dentro da Casa, na frente da lareira, deixando marcas pretas nas lajotas, onde terminou a purificação.
Hilda reverteu o apelido do Morto.
– Imagine se eu vou ter chamar de Morto! Vou te chamar de Vivo!
Como Inês trabalhava no setor de Relações Internacionais da Unicamp, levava o Vivo à universidade todos os dias. Ela passava na Casa do Sol logo pela manhã, o que fez estreitar os laços de amizade com a escritora. Hilda acordava cedo, tomava um café preto e se debruçava em livros. Parava a leitura apenas quando pegava um dos objetos que ficava em cima da mesa: uma lupa e um espelhinho. A lupa servia para enxergar os significados das palavras e do seu destino. Posicionava-a rente às letras miúdas dos dicionários ou às finas linhas de sua mão. O espelhinho, para se olhar às vezes e auxiliá-la a tirar alguns pêlos do buço com a pinça, que ficava ao seu lado.
 Quando Inês chegava, ela estava submersa em palavras lidas e relidas. A xícara de café se perdia na mesa empilhada de títulos. Inês sentava-se na cadeira da frente da escrivaninha do escritório. Hilda estendia-lhe um livro. Pedia para ler algum de seus poemas. Começava ali uma comunhão entre as duas. As palavras construíam cenários e as transportavam para um encontro singular. Odes maiores ao pai era um dos mais pedidos da escritora, que o escreveu para se despedir de Apolônio Hilst. O último verso está cravado na lápide do túmulo de seu pai.

“(Largo pensante)
Uns ventos te guardaram. E outros guardaram-me a mim. E aparentemente separados
Guardamo-nos os dois, enquanto os homens no tempo se devoram
Será lícito guardarmo-nos assim?
Pai, esse é o tempo de espera.Ouço que é preciso esperar
Uns nítidos dragões de primavera, mas à minha porta eles vieram sempre,
Claros, gigantes, líquida semente no meu pouco de terra(...)”.[22]

Inês o lia com sua voz suave e pausada. Os seus lábios pequenos, carnudos e fresados e as maçãs do rosto saliente lhe dava um aspecto angelical. Sempre que terminava de ler, ela e Hilda choravam.

“E ainda que as janelas se fechem, meu pai, é certo que amanhece”.

Depois da leitura, Hilda bebia vinho do Porto, almoçava e ia ao escritório, onde ficava sentada na cadeira florida, que ganhou um rombo no assento cavoucado pelos cachorros, deixando a espuma amarela à mostra. Colocava óculos de aros largos e ficava ali até a hora do jantar, enquanto os cães menores se revezavam em seu colo. Ela não conseguia desenvolver uma história com começo, meio e fim. Por isso, não escrevia telenovelas. Mas adorava assisti-las. “Ah Benedito (Rui Barbosa), eu gosto tanto do seu Renascer[23]. Ela admirava quem conseguia escrever algo com a seqüência que ela não colocava em seus textos, considerados herméticos. Inês a consolava.
– Eu não acho, Hilda. Seus textos não podem ser mais claros do que já são. A sua linguagem não é padrão, sua pontuação é única porque obedece ao fluxo do pensamento.
A escritora percebeu que Inês estava interessada em conhecer seu trabalho e lhe mostrou os seus primeiros livros, que não se encontravam à venda. Havia pouca divulgação de sua obra. Certa ocasião, foi a uma loja e pediu por livros de sua autoria:
–Você tem livros de Hilda Hilst?
– Não, senhora, não trabalhamos com literatura estrangeira.
Aquela não havia sido a única vez. Na estréia da peça de sua autoria, Aves da Noite, dirigida por Carlos Murtinho, no Rio de Janeiro em 1983, Hilda passou o que segundo ela, foi a maior vergonha da sua vida: os jornalistas cariocas a abordaram com “How are you, madam?”[24]
Inês se encantou pela obra de Hilda e se tornou uma grande apreciadora de seus livros.
– Eu te admiro tanto, queria tanto escrever como você!
– Eu fico falando obrigada, obrigada... estou com vergonha.
Sentia-se acanhada com os elogios alheios. Quando alguém ia lhe perguntar qualquer coisa sobre sua vida, ela respondia:
– Leia os meus livros. Está tudo lá.
Todavia, continuava indagando às pessoas que conhecia. Inês lhe apresentou Marina, uma jovem que conheceu em um acampamento na Patagônia. Marina viveu anos no Xingu como enfermeira. Foi morar em São Gabriel da Cachoeira, a 800 km de Manaus, no extremo noroeste do país, para formar índios como agentes sanitários. Marina era leitora de Hilda e estava ansiosa para conhecê-la. Quando entrou na Casa do Sol, a música de Gustav Mahler ecoava pela sala. A quinta sinfonia era a que Hilda mais apreciava.
 Marina sentou-se numa poltrona em frente a ela e respondeu à sua inquietude de conhecer a nova visitante. A escritora conseguia captar o outro em sua totalidade: voltava sua percepção às pessoas, proporcionando-lhes um encontro com elas mesmas. Depois de ter sua vida desvendada por Hilda Hilst, Marina comentou, ao sair no portão coberto por primaveras cor-de-rosa:
– Aqui, a sinapse se faz de uma forma diferente do resto do mundo.
Ali, a poesia vinha pronta na mente de Hilda, especialmente quando estava tomando banho. Saía correndo pela casa do jeito que estava para não perder o fluxo do pensamento. “Uma caneta, por favor, uma caneta” – gritava aos moradores. “A poesia você não programa, é um estado inexplicável porque surge a qualquer momento. O primeiro verso aparece para você.”[25]
O seu banheiro fica no mesmo corredor de seu quarto. As paredes são revestidas de azulejos brancos que se intercalavam entre outros com desenhos ao centro, em alto relevo de margaridas azul-anis, a mesma cor da parte de cima da parede do lado esquerdo, decorada por um painel de tons claros. No desenho, um unicórnio de pêlos alvos, com um chifre tão comprido que quase alcança o topo do quadro, e volumoso rabo, tem sua face refletida num espelho de mão, segurado por uma jovem com ares de princesa, trajando vestido de cor champanhe, com a parte de baixo mesclada de verde-água. A expressão do unicórnio é de satisfação por ter se visto, enquanto a princesa insiste em continuar com o espelho à mostra, direcionando seus olhos para a outra mão, que acaricia o comprido pescoço do animal. O painel foi um presente da amiga Lygia Fagundes Telles, que o trouxe por se lembrar do conto de Hilda O Unicórnio, onde ela se metamorfoseia no bicho mitológico após misturar autobiografia e ficção.
Como tantas vezes fez, Hilda entrou embaixo do chuveiro, girou a torneira prateada. O vapor d’água embaçava o espelho oval, emoldurado por um filete de madeira escura, e também o vidro da janela que fica ao lado esquerdo do espaço onde se toma banho. Estava com o corpo ensaboado quando olhou para a parede azul com o painel do unicórnio. Reparou que a cal da parede formava uma figura com ares da Península Ibérica e pensou que deveria ser um espanhol ou um português. “Aí eu descobri que era o Camões. Mas o que o Camões estava fazendo no meu banheiro? Ficou dias lá, me olhando”[26]. A partir de então, tomava banho fitando aquela figura enigmática, até que um dia, com espumas brancas de sabonete espalhadas pelo corpo, veio-lhe um verso em mente. Recitou com sotaque português: “Que este amor não me cegue, nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba”. Se enrolou em uma toalha e saiu do banho contente, pronta para começar a escrever as dez poesias do livro Cantares do sem nome e de partidas, que foi concluído em quinze dias.
Entre as palavras usadas estavam despedida, ausência, luto. Morte. Adeus, nunca mais. Nessa época, teve a visão de uma moça, no chão de seu quarto. Cheia de sangue. Pensou que fosse ela, um prenúncio de seu fim. Mas concluiu que não, não se parecia com seu corpo, seu rosto. Um dia se passou e veio a notícia: uma jovem amiga de dezenove anos havia sofrido um acidente de carro. Mirella, a filha mais nova de Aristodemo Pinotti. Mirella havia partido. Cantares do sem nome e de partidas foi dedicado à sua memória. “Eu não sabia porque eu tinha escrito. Mas porque eu ia falar sobre a partida de alguém?”[27].

“Mirella, minha amiga-menina
Pequena pastora das manhãs de riso:
Guardo-te cheia de luz
Dourada de doçura
Nas minhas manhãs de dentro
Essas escuras, essas do Nunca Mais
Pequenina pastora.
(...)
Livre da Terra, entre os braços
De alguns deuses-meninos
Minha amiga-menina no sempre há de ficar.
Como era o sorriso na tua boca
E como é a dos amantes

A quimera louca, essa quimera do NUNCA SEPARAR.”





[1] Agenda Imprimo, 13 mar 1981. (Arquivo CEDAE UNICAMP)
[2] Agenda Ótima, 21 set 1987 (Arquivo CEDAE UNICAMP)
[3] SÁ, Sérgio de. In: GRANDO, Cristiane. Amavisse de Hilda Hilst: Edição genética e crítica. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1998.
[4] Luminosa Despedida, Léo Gilson Ribeiro, Jornal da Tarde, 04/03/89

[5] MEDEIROS. Falações Hilstinianas. In: GRANDO, Cristiane. Amavisse de Hilda Hilst: Edição genética e crítica. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1998.
[6] SCALZO, Fernanda. Hilda Hilst vira pornógrafa para se tornar conhecida e vender mais. Folha de S. Paulo. 11mai 1990. Folha  Ilustrada.
[7] HILST, Hilda. O Caderno Rosa de Lory Lambi. São Paulo : Massao Ohno, 1990
[8] PALAVRAS abaixo da cintura. Revista Intervew. Abril, São Paulo, nº136, 1991. p.44
[9] FURIA, Luíza Mendes. O calmo talento de Hilda Hilst. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13 fev 1986.
[10] RIBEIRO, Léo Gilson. Os versos de Hilda Hilst, integrando a nossa realidade. Jornal da Tarde. São Paulo, 1980.

[11] MACHADO. Clara M.S.N.A. A escritura delirante em Hilda Hilst. São Paulo: PUC-SP, 1993.
[12] CASTELO, José. Potlatch, a maldição de Hilda Hilst. O Estado de S.Paulo. São Paulo, 30 out 1994
[13] RUSCHEL, Rita. Hilda Furacão Hilst. Caros Amigos. São Paulo, nº84  mar 2004

[14] HILST, 1990.
[15] GRANDO, Cristiane. Hilda Hilst: A morte e seu duplo. Jornal da UBE, nº107, mar 2004, p 6.

[16] CASTELO, 30 out 1994

[17] MEDEIROS, 1998.
[18] CASTELO, 30 out 1994
[19] PALAVRAS, 1991. p.44
[20] CASTELO, 30 out 1994.
[21] Id., Emergência doutores: sem asas, sem carro, sem cavalo. In: _______. Cascos e Carícias. Nankin. 1994
[22] Id., Odes Maiores ao Pai. In:________. Poesia (1959- 1967). São Paulo: Sal, 1967.
[23] Referente à telenovela de Benedito Rui Barbosa. Id., 1998.
[24] DE BEM com a coisa. Folha de S. Paulo. São Paulo, 31 mar 1991, Revista da Folha
[25] MASCARO, 21 jun 1986.
[26] BORSERO, 1995
[27] GRANDO, mar 2004.