“Sinto-me livre para
fracassar”
Geoges Bataille, escritor francês
(1897-1962)
O relógio do tamanho de uma porta não mostrava mais as
horas, a estátua do século XXVII de Santa Thereza, com os dedos das mãos
entreabertos, não estendia mais seus braços convidativos com a tinta
descascada, o nu feminino pintado por J.Toledo não decorava mais a parede.
Esses objetos todo já não estavam mais na Casa do Sol. Haviam sido vendidos.
Quando as dificuldades financeiras aumentaram, Hilda decidiu se desfazer também
da casa de Bedecilda, sede da Fazenda São José, abandonada há vinte anos. O
reboque se soltava em generosas lascas, deixando os tijolos expostos e a
maioria das telhas havia abandonado a cobertura. Todos vidros estavam
estilhaçados. Nenhum comprador queria reformá-la: as propostas recebidas
previam a demolição do prédio, que estava em ruínas.
Hilda ficava desapontada com quem não percebia que se
poderia aproveitar a casa onde passara nos finais de semana em sua juventude,
quando vinha de São Paulo. Hilda guarda uma foto sua na sala da casa aos
dezoito anos, sentada em uma poltrona de estampa de folhas. Suas pernas longas
e finas estão cruzadas. A que está por cima da outra é clareada pela luz que
incide pelas portas de vidro ao seu lado direito e também ilumina sua mão, que
segura com firmeza o braço da poltrona. Sua mãe a
havia comprado a fazenda em 1942, quando Hilda tinha doze anos. Era o lugar em
que passava as férias em sua adolescência e onde havia morado por três anos
enquanto esperava a Casa do Sol ficar pronta. A casa de Bedecilda foi
construída no início do século XX com pesados tijolos de argila. Pintada toda
de branco, tinha janelas altas de madeira e três mangueiras imponentes
recepcionavam as visitas. Hilda não queria que aquele lugar deixasse de existir.
Mesmo precisando de dinheiro, recusou as ofertas que apareceram com a proposta
de demolir a casa. Teve a idéia de oferecê-la à Unicamp e conversou com seu
amigo, o então reitor da universidade, José Aristodemo Pinotti.
Numa tarde de domingo de 1985, Pinotti foi à Casa do Sol
acompanhado de sua mulher, Sueli, apresentar uma compradora para a casa: Inês
Parada. Ela se encantou com a antiga sede e estava disposta a reconstruí-la. A
casa estava em péssimas condições. Mesmo assim, Inês não conseguia enxergar a
destruição e a visualizava como um dia viria a ser.
Quando entrou na Casa do Sol, foi apresentada a Hilda na
cozinha. Ela nunca ouvira falar em Hilda Hilst. Dante preparava um café preto
enquanto se discutiam os preços. Entre um gole e outro, o negócio foi fechado.
Inês ficou curiosa em saber o que aquela mulher de cabelos vermelhos, que
vestia batas indianas, escrevia. Sua amiga Sueli Pinotti lhe emprestou o livro A
Obscena Senhora D. Ao ler, percebeu a universalidade da obra. A Senhora
D é uma mulher que descobre que não é mais jovem, “que se sente, mas que não está abandonada,
não por uma pessoa ou por alguém, mas um abandono natural da vida provocado pela
rotina e pelo tempo que gastas as
relações por mais intensas que elas sejam”. Inês ficou encantada com a
sinceridade contida no texto. Percebeu que a literatura de Hilda Hilst
desconhecia o temor de descrever com exatidão o que foi sentido, sem se
preocupar com as conseqüências. Sueli lhe emprestou outro livro, agora Poesia.
Inês se reconheceu. Acreditava, que do mesmo modo que a
mulher de trinta anos é considerada balzaquiana (devido ao romance A mulher de trinta anos, de Balzac), a
de cinqüenta deve ser considerada hilstiniana.
Assim
que a reforma da antiga casa de Bedecilda foi concluída, convidou Hilda para um
jantar de inauguração. As janelas permaneceram as mesmas, mas agora tinham
novas vidraças. Os troncos das árvores não estavam mais camuflados pelo mato e
podiam ser vistos desde sua raiz. As paredes, que passaram vinte anos no
silêncio, voltavam a ecoar vozes e alegria. Hilda foi ao terraço, onde duas
compridas mangueiras se abraçavam à sua esquerda. Enquanto as lágrimas
escorriam pelo seu rosto, comentou com sua nova amiga Inês Parada:
– É muito emocionante ver essa casa de novo com vida.
Hilda queria envelhecer em paz, sem se preocupar muito.
Tinha medo de ficar amarga.[1]Aos
57 anos, se sentia velha e se preocupava com o dinheiro. Passava por
dificuldades financeiras e tinha medo de que isso lhe afetasse ainda mais.
Chorou pela manhã, no dia 21 de setembro de 1987. Havia escrito por 37 anos e
sentia como se nada tivesse produzido.[2]
Enquanto tomava um copo de suco de laranja, seus olhos percorriam as folhas do
jornal do dia. Uma matéria sobre a escritora francesa Régine Deforges, autora
do best-seller A bicicleta azul,
informava que ela faturou naquele ano dez milhões de dólares com a venda do
livro. “Eu não acredito” – Hilda disse – “Eu sou maravilhosa, mas escrevo em
língua portuguesa e essa puta ganhou milhões”.[3]
Estava decidida a iniciar a fase erótica de sua obra.
Ria, ria muito enquanto escrevia. Mostrava para Iara, davam
muitas risadas. Ia à casa de Inês. Sentava em uma cadeira de palha cercada por
quatro jabuticabeiras e lia um trecho. Gargalhavam. Era O caderno rosa de Lori Lamby, a história de uma criança de oito
anos que escreve em seu diário suas fantasias sexuais. “Eu queria que a cidade
inteira risse comigo. Com doçura, com riso, finalmente eu me tornarei – espero
– consumível”.[4]
Além disso, chegou à conclusão de que existiam três soluções para quem pensa em
excesso: “o primeiro é o suicídio, mas é dificílimo você se matar, eu li tudo
sobre o suicídio. O segundo é o alcoolismo, mas não dá para beber o dia
inteiro. O terceiro é o riso”. Considerava o riso o mais compatível com o seu
temperamento e lembrou-se de que fazemos os mesmo movimentos peristálticos
quando rimos e quando comemos. “Ao invés de comer alguém, eu rio”.[5]
Mesmo assim, dizia que era difícil escrever pornografia com sessenta anos de
idade, “quando você esqueceu praticamente tudo”.[6]
Como de costume, mostrava os textos inéditos para os amigos
que iam visitá-la. A mesa da sala de jantar estava rodeada de admiradores,
atentos para a novidade. No retrato pendurado na parede, Apolônio
observava a todos. Sua orelha, levemente saliente, aparece inteira devido ao
corte alto dos seus cabelos, ostentados por uma franja volumosa penteada para
trás. Os olhos, sérios, sugerem sedução e intensidade. Ao seu lado, Bedecilda
sorri com os olhos. Um longo colar de pérolas enfeita seu colo. Sua boca
pequena ameaça demonstrar alegria e sua cabeça se inclina delicadamente ao
encontro de seu amor.
Sentada na cabeceira da mesa, numa cadeira de
encosto largo e alto de madeira escura que acomodava toda a sua coluna e
cabeça, Hilda leu um trecho do seu novo livro
imitando a voz de uma criança:
“Papi não está mais triste não, ele está é diferente, acho
que é porque ele está escrevendo a tal bananeira, quero dizer a bandalheira que
o Lalau quer. Eu tenho que continuar a minha história e vou pedir depois pro
tio Lalau se ele não quer pôr o meu caderno na máquina dele, pra ficar livro
mesmo. Eu contei pro papi que gosto muito de ser lambida, mas parece que ele
nem me escutou, e se eu pudesse eu ficava muito tempo na minha caminha com as
pernas abertas mas parece que não pode porque faz mal, e porque tem isso da
hora. É só uma hora, quando é mais, a gente ganha mais dinheiro, mas não é todo
mundo que tem tanto dinheiro assim pra lamber.”[7]
Risos. Gargalhadas. Léo Gilson Ribeiro e Ana Lúcia
Vasconcellos sérios. Olhavam as bocas abertas e os dentes expostos à sua volta.
Hilda percebeu a apatia dos amigos.
– E então? Vocês não estão achando engraçado? Não é
gozadíssimo?
– Não – responderam os dois, abalados.
Ana Lúcia acreditava que aquela obra seria a ruína da
amiga. Para ela, a história da menina de oito anos escrevendo fantasias sexuais
em seu diário iria destruir a obra que Hilda Hilst havia escrito até então. Léo
Gilson ficou anos sem falar com ela. Tentou convencê-la a desistir de escrever
erotismos:
– Pensa no Kafka, que demorou anos para publicar um livro[8]
– insistia sem êxito.
Considerou O caderno
rosa de Lori Lamby uma ofensa
frente aos elogios que ele, como crítico literári,o havia feito até então à
escritora. Considerava que ela produzia “a mais abissal e deslumbrante prosa
poética do Brasil, posterior à genialidade de Guimarães Rosa”.[9]
Grande admirador de seu trabalho, dizia que sua obra era “demasiado ampla,
rica, complexa e atemporal para ser incluída em qualquer rótulo, por mais
abrangente que seja”.[10]
Depois que essa abrangência alcançou o estilo erótico, pornográfico ou
intitulado por alguns como “pornô-chique”, houve quem acreditasse que ela havia
enlouquecido. Hilda perguntou a um repórter que foi entrevistá-la na Casa do
Sol:
– Por que você veio?
– Porque acham que você está louca.
Quando foi à capital do Estado assistir à
defesa de uma tese de doutorado em semiótica sobre a obra hilstiniana, sentiu
que foi apontada como louca. A aluna da PUC São Paulo Clara Silveira Machado
passou treze anos pesquisando para escrever o trabalho chamado A língua delirante de Hilda Hilst. Delírio.
Distúrbio mental caracterizado por idéias que contradizem as evidências e são
inacessíveis à crítica. Exaltação do espírito.
Desvairamento. A tese afirmava que Hilda “simula (em grande parte das
narrativas) situações delirantes que têm referências no registro da
psicanálise”.[11]
Hilda sentou-se na primeira fileira da classe
com discrição, atenta para ouvir. Paranóia, esquizofrenia. Palavras que vinham
da banca examinadora. Olhavam para ela. A apontavam. Sentiu-se incomodada.
Olhou para trás, como quem não quer acreditar. Devia ter algum louco naquela
mesma direção, não ela. Mas era.
– Hilda, é a primeira vez no departamento que
se faz uma tese sobre a obra de uma pessoa viva. – comenta Clara Silveira
Machado, ao término da defesa de seu trabalho.
– E você pensa mesmo que eu estou viva?
Antes de sair, completa:
– O camburão já está na porta com a equipe
médica?[12]
Uma foto de Hilda com seis anos ilustra a
contracapa de O caderno rosa de Lori
Lamby. Abaixo, a frase: “Ela foi uma boa menina”. Um ano depois de tirar
aquela foto, Hilda entrou para o Internato Santa Marcelina, em São Paulo, onde
fazia o papel de anjo nos teatros de final de ano. Depois, Hildinha passou a
representar a avozinha-lobo do Chapeuzinho Vermelho. Puseram talco nos seus
cabelos e no seu rosto, e óculos grandes com aro de metal. Nas suas unhas,
garras feitas de cartolina preta. Tudo porque Hildinha não sabia pedir
desculpas. Nem sempre era uma “boa menina”, mas verdadeira como toda criança.
Depois que cresceu, Hilda não se daria bem com menores de
doze anos. Não entendia porque deveria achá-las “engraçadinhas” – “Elas são tão
cruéis”, justificava.
Acreditava que eram “seres verdadeiros demais”, e não tinha
convenções para com elas. Perto de crianças, os assuntos não eram tratados como
tabus, mas expostos com naturalidade. A amiga e escritora gaúcha Neli Dutra se
assustava com tanta liberdade. Neli era vizinha de Hilda quando morava no
Edifício Bocaína, na Alameda Santos, Jardins. Levava seus filhos à Fazenda São
José para passar o final de semana, na época em que Hilda criava cavalos nas
terras de sua mãe. Ela havia comprado um majestoso garanhão para procriar com
as éguas que estavam no cio. Logo de manhã, os filhos de Neli, Rita e Beto,
correram rumo à cachoeira e se penduraram na cerca do piquete para ver a cena.
Ela chegou esbaforida e expulsou as crianças de lá. Hilda intercedeu
calmamente:
– É assim mesmo, o sexo faz parte do processo de
procriação, a urgência da preservação da espécie. Não há problemas das crianças
presenciarem uma das tantas cenas bonitas produzidas pela natureza.[13]
Hilda não tratava crianças de igual para igual, nem afinava
a voz para se dirigir a elas, como a Daniel, filho de Mora e Olga, que ia com
os pais nos finais de semana à Casa. Daniel adorava o campo, principalmente o
jardim, onde passava a maior parte do tempo com o amigo Bruno Baenderek
brincando de Comandos em Ação. Dezoito anos depois, quando Mora remexia
no quintal para plantar alguma coisa, sempre encontrava pequenos super-heróis
de plástico cravados na terra. Afinal, os prisioneiros precisam ser enterrados.
Daniel tinha cinco anos quando Hilda estava escrevendo O Caderno Rosa de Lori Lamby e não o poupava de ouvir trechos do
livro, que lia para os visitantes. Todos gargalhavam sentados na mesa do pátio
interno após o café da tarde. Ele achava graça e entendia, com a ingenuidade de
Lori.
“O sapo Liu-Liu tinha muita pena do seu cu. Olhando só pro
chão! Coitado! Coitado do cu do sapo Liu-Liu! Então ele pensou assim: vou fazer
de tudo pra que um rainho de Sol entre nele, coitadinho! Mas não sabia como
fazer isso. Conversando um dia com a minhoca Léa, contou tudo pra ela. Mas Léa
não sabia nada de cu. Vivia procurando o seu e não achava”.[14]
Depois de Lori, Hilda decidiu que ia escrever mais nada, “a
não ser grandes e espero adoráveis bandalheiras”, como seus três livros
seguintes: Bufólicas, Contos
D’Escárnio/Textos Grotescos e Cartas
de um Sedutor. Para isso, precisou aumentar o vocabulário obsceno,
descobrindo novas nomenclaturas para os órgãos sexuais. Procurava em
dicionários e enciclopédias novas possibilidades de abordar o tema e se
questionava sobre o verdadeiro sentido da obscenidade. “O que é OBSCENO?
OBSCENO? Ninguém sabe até hoje o que é OBSCENO. OBSCENO pra mim é a miséria, a
fome, a crueldade, a NOSSA época é obscena”.[15]
Os livros da fase erótica tiveram suas
edições esgotadas e traduzidas para outros idiomas. Il quaderno rosso di Lori Lamby em 1991, na Itália, e Contes Sarcastiques (Fragments érotiques)
em 1994, na França, onde o crítico literário Christian Kazandjian escreveu no
jornal Révolution que o livro era um
“salutar soco na cara que seduz e espanta”.[16]
Hilda confirma a intenção de chocar o público e estimular os questionamentos
existencialistas.
“Eu gostaria que os meus livros eróticos
chocassem a um ponto que as pessoas vomitassem várias semanas e começassem a
repensar tudo novamente. Quem eu sou? Para que eu existo? Como é o meu
comportamento diante do outro? O que verdadeiramente eu sinto diante da vida e
da morte?”.[17]
Apesar do sucesso, Hilda não recebeu o retorno financeiro
do prestígio. Prestígio vem de “praestigiare”, em latim, que significa ilusão.
Tentou contato com a editora italiana Sonzogno
para saber do seu pagamento de direitos autorais, mas eles tinham mudado de
endereço e não conseguiu o novo[18].
Declara que não escreveria basicamente por dinheiro. “Nunca ter sido lida, isto
é o que me perturba”[19].
Acreditava que possuía o “poder de perder”, expressão que traduz o significado
da palavra “Potlatch”, nome de uma festa de ameríndios em que eles exibiam
todos os seus bens materiais e, depois, ateavam fogo. Para eles, quanto mais se
destruísse as riquezas, mais poder se detinha. “Estou continuamente exibindo as
minhas riquezas, entregando o que tenho de melhor, mas os outros jogam fora o
que eu os ofereço. Adquiri com o tempo esse ‘poder de perder’”[20].
Dante e Iara saíram da Casa e foram morar em São Paulo, em
1990. Hilda não ficou sozinha, porque neste mesmo ano conheceu Jurandy Valença,
estudante de jornalismo de Maceió que teve contato com seus livros por meio de
Patrícia Vasconcelos, uma amiga professora da Universidade Federal de Alagoas.
Encantou-se por A Obscena Senhora D e Sobre a tua grande face. A prosa e
poesia, muito intensa e experimental, fizeram-no sentir a potência da escrita
hilstiniana, tornando-se um grande admirador de sua obra. No final dos anos 90,
veio para São Paulo. Entre um dos objetivos, conhecer a autora. Seu amigo
Nilton Rezende, poeta alagoano, conhecia Lygia Fagundes Telles, grande amiga de
Hilda que lhe passou o telefone de contato. Jurandy ligou três vezes até
conseguir agendar uma visita. Conseguiu-a para novembro de 1990. Ela o
esperava com vestido listrado de branco e rosa e um chapéu de palha na cabeça.
Houve uma empatia imediata entre os dois. Jurandy
tinha vinte anos e tomou o seu primeiro porre de uísque Grat’s. A partir de
então, todo final de semana freqüentava a chácara. Hilda o convidou para morar
com ela e ajudá-la como secretário. Jurandy se encantou tanto com o universo
literário que começou a produzir poemas. Mostrou-os para a escritora dar sua
opinião.
– Uma droga.
Jurandy não desistiu.
Decidiu mergulhar nas páginas dos livros da biblioteca particular de Hilda,
com mais de mil títulos, e a escrever escondido dela. Depois de conseguir
produzir poemas dos quais se orgulhasse, tomou coragem e ofereceu para Hilda
ler. Todos os que ela aprovou fizeram parte do seu primeiro livro de poesias. O
dinheiro foi acabando e, de Grat’s, passaram a beber vinhos baratos e a jantar
“miojo”. Jurandy ficou na Casa até 1993, depois voltava para visitas.
Hilda abriu a gaiola para que o pássaro de estimação
saísse. Ficou no pátio olhando para as folhagens das árvores que o cercavam,
esperando que o animal voasse liberto por ali. Estava muito comovida, chorava
com facilidade. Andou pela Casa chorando. Saiu ao jardim. O entardecer
era visto por entre os troncos dos pinheiros que agora cercam o local. Foi até a figueira, falou com a árvore. Percebeu que ela
também estava velha, cheia de parasitas no tronco e refletiu sobre a sua
própria mortalidade.
Sentia pavor de perder os dentes, porque associava esse
fato à idéia da morte. Tinha pesadelos com eles. Sonhou que perdeu uma ponte
postiça e outro dente com pequenas raízes, muito limpo, que foram lançados em
um recipiente de ladrilho. Havia uma caveira ali, com a arcada dentária completa.
Escreveu em crônica para o jornal Correio Popular: “Bressani, meu dentista
genial, tenho pensado tanto naquela nossa insondável questão de ‘por que os
dentes duram na caveira e caem se a gente dura mais que a vida inteira?”[21]
Sobre isso, articulou a seguinte frase em Com
os meus olhos de cão e outras novelas: "Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem”.
Em 1991, Hilda não tinha dinheiro para tratar dos dentes.
Contrairia uma gengivite crônica em 1998, que a levou a perder alguns da arcada
dentária superior. Levava a mão à boca para falar ou rir mas nem sempre o humor
vencia as suas angústias e se lamentava pela obscuridade de seu trabalho.
Ela estava sem carro, dependia das caronas da vizinha Inês
Parada até mesmo para comprar cigarros. Ela não via aquele gesto como uma
ajuda. Os minutos que as duas estavam no carro indo à farmácia, ao médico ou ao
supermercado eram minutos de profundo conhecimento que Hilda lhe transmitia.
Indicava-lhe leituras como A negação da morte, O despertar dos mágicos,
Viagem ao centro da Terra. Para ela, a escritora era “um prodígio de ser humano diferenciado
presente, com reverência pela vida, sabedoria e cultura”. Sentia-se
privilegiada por conseguir conquistar sua confiança. Inês considerava que quem
ganhava com a atenção que dava à amiga era ela mesma.
Naquela época, Hilda recebeu em sua casa o Morto, apelido de Edson Costa Duarte,
estudante de Letras que estava escrevendo uma tese de mestrado na Unicamp sobre
Clarice Lispector e começou a estudar também a obra de Hilda Hilst. O Morto tinha características de um hindu: barba
preta e comprida, olhos amendoados e olhar penetrante, pele tom moreno-oliva,
cabelos escuros e encaracolados, presos em um rabo. Tinha fases de euforia,
quando não conseguia dormir e passava a noite com algum tipo de atividade que o
fizesse gastar as energias. Numa dessas fases, a escritora estava hospedada na
casa de Mora Fuentes para fazer exames médicos em São Paulo, quando Morto
telefonou.
– Hilda, estou sentindo o clima da Casa muito estranho,
posso fazer um ritual “Potlatch”?
Ela concordou. Morto se despiu, pegou algumas roupas,
objetos plásticos, documentos, juntou-os próximos à varanda e ateou fogo. Como
as chamas formaram altas labaredas, os seguranças do condomínio foram ver o que
estava acontecendo. Morto decidiu continuar o ritual “Potlatch” dentro da Casa,
na frente da lareira, deixando marcas pretas nas lajotas, onde terminou a
purificação.
Hilda reverteu o apelido do Morto.
– Imagine se eu vou ter chamar de Morto! Vou te chamar de
Vivo!
Como Inês trabalhava no setor de Relações Internacionais da
Unicamp, levava o Vivo à universidade todos os dias. Ela passava na Casa do Sol
logo pela manhã, o que fez estreitar os laços de amizade com a escritora. Hilda
acordava cedo, tomava um café preto e se debruçava em livros. Parava a
leitura apenas quando pegava um dos objetos que ficava em cima da mesa: uma
lupa e um espelhinho. A lupa servia para enxergar os significados das palavras
e do seu destino. Posicionava-a rente às letras miúdas dos dicionários ou às
finas linhas de sua mão. O espelhinho, para se olhar às vezes e auxiliá-la a
tirar alguns pêlos do buço com a pinça, que ficava ao seu lado.
Quando Inês chegava,
ela estava submersa em palavras lidas e relidas. A xícara de café se perdia na
mesa empilhada de títulos. Inês sentava-se na cadeira da frente da escrivaninha
do escritório. Hilda estendia-lhe um livro. Pedia para ler algum de seus
poemas. Começava ali uma comunhão entre as duas. As palavras construíam
cenários e as transportavam para um encontro singular. Odes maiores ao pai
era um dos mais pedidos da escritora, que o escreveu para se despedir de
Apolônio Hilst. O último verso está cravado na lápide do túmulo de seu pai.
“(Largo pensante)
Uns ventos te guardaram. E
outros guardaram-me a mim. E aparentemente separados
Guardamo-nos os dois, enquanto
os homens no tempo se devoram
Será lícito guardarmo-nos assim?
Pai, esse é o tempo de
espera.Ouço que é preciso esperar
Uns nítidos dragões de
primavera, mas à minha porta eles vieram sempre,
Claros, gigantes, líquida
semente no meu pouco de terra(...)”.[22]
Inês o lia com sua voz suave e pausada. Os seus lábios
pequenos, carnudos e fresados e as maçãs do rosto saliente lhe dava um aspecto
angelical. Sempre que terminava de ler, ela e Hilda choravam.
“E ainda que as janelas se
fechem, meu pai, é certo que amanhece”.
Depois da leitura, Hilda bebia vinho do Porto, almoçava e
ia ao escritório, onde ficava sentada na cadeira florida, que ganhou um rombo
no assento cavoucado pelos cachorros, deixando a espuma amarela à mostra. Colocava
óculos de aros largos e ficava ali até a hora do
jantar, enquanto os cães menores se revezavam em seu colo. Ela não conseguia
desenvolver uma história com começo, meio e fim. Por isso, não escrevia
telenovelas. Mas adorava assisti-las. “Ah Benedito (Rui Barbosa), eu gosto tanto do seu Renascer”[23].
Ela admirava quem conseguia escrever algo com a seqüência que ela não colocava
em seus textos, considerados herméticos. Inês a consolava.
– Eu não acho, Hilda. Seus textos não podem ser mais claros
do que já são. A sua linguagem não é padrão, sua pontuação é única porque
obedece ao fluxo do pensamento.
A escritora percebeu que Inês estava interessada em
conhecer seu trabalho e lhe mostrou os seus primeiros livros, que não se
encontravam à venda. Havia pouca divulgação de sua obra. Certa ocasião, foi a
uma loja e pediu por livros de sua autoria:
–Você tem livros
de Hilda Hilst?
– Não, senhora,
não trabalhamos com literatura estrangeira.
Aquela não havia sido a única vez. Na estréia da peça de
sua autoria, Aves da Noite, dirigida por Carlos Murtinho, no Rio de
Janeiro em 1983, Hilda passou o que segundo ela, foi a maior vergonha da sua vida: os jornalistas cariocas a abordaram
com “How are you, madam?”[24]
Inês se encantou pela obra de Hilda e se tornou uma grande
apreciadora de seus livros.
– Eu te admiro
tanto, queria tanto escrever como você!
– Eu fico falando
obrigada, obrigada... estou com vergonha.
Sentia-se acanhada com os elogios alheios. Quando
alguém ia lhe perguntar qualquer coisa sobre sua vida, ela respondia:
– Leia os meus
livros. Está tudo lá.
Todavia,
continuava indagando às pessoas que conhecia. Inês lhe apresentou Marina, uma
jovem que conheceu em um acampamento na Patagônia. Marina viveu anos no Xingu
como enfermeira. Foi morar em São Gabriel da Cachoeira, a 800 km de Manaus, no
extremo noroeste do país, para formar índios como agentes sanitários. Marina
era leitora de Hilda e estava ansiosa para conhecê-la. Quando entrou na Casa do
Sol, a música de Gustav Mahler ecoava pela sala. A quinta sinfonia era a que
Hilda mais apreciava.
Marina sentou-se numa poltrona em frente a ela
e respondeu à sua inquietude de conhecer a nova visitante. A escritora
conseguia captar o outro em sua totalidade: voltava sua percepção às pessoas,
proporcionando-lhes um encontro com elas mesmas. Depois de ter sua vida
desvendada por Hilda Hilst, Marina comentou, ao sair no portão coberto por
primaveras cor-de-rosa:
– Aqui, a sinapse
se faz de uma forma diferente do resto do mundo.
Ali, a poesia vinha pronta na
mente de Hilda, especialmente quando estava tomando banho. Saía correndo pela
casa do jeito que estava para não perder o fluxo do pensamento. “Uma caneta,
por favor, uma caneta” – gritava aos moradores. “A
poesia você não programa, é um estado inexplicável porque surge a qualquer
momento. O primeiro verso aparece para você.”[25]
O seu banheiro fica no mesmo
corredor de seu quarto. As paredes são revestidas de azulejos brancos que se
intercalavam entre outros com desenhos ao centro, em alto relevo de margaridas
azul-anis, a mesma cor da parte de cima da parede do lado esquerdo, decorada
por um painel de tons claros. No desenho, um unicórnio de pêlos alvos, com um
chifre tão comprido que quase alcança o topo do quadro, e volumoso rabo, tem
sua face refletida num espelho de mão, segurado por uma jovem com ares de
princesa, trajando vestido de cor champanhe, com a parte de baixo mesclada de
verde-água. A expressão do unicórnio é de satisfação por ter se visto, enquanto
a princesa insiste em continuar com o espelho à mostra, direcionando seus olhos
para a outra mão, que acaricia o comprido pescoço do animal. O painel foi um
presente da amiga Lygia Fagundes Telles, que o trouxe por se lembrar do conto
de Hilda O Unicórnio, onde ela se metamorfoseia no bicho mitológico após
misturar autobiografia e ficção.
Como tantas vezes
fez, Hilda entrou embaixo do chuveiro, girou a torneira prateada. O vapor
d’água embaçava o espelho oval, emoldurado por um filete de madeira escura, e
também o vidro da janela que fica ao lado esquerdo do espaço onde se toma
banho. Estava com o corpo ensaboado quando olhou para a parede azul com o
painel do unicórnio. Reparou que a cal da parede formava uma figura com ares da
Península Ibérica e pensou que deveria ser um espanhol ou um português. “Aí eu descobri que era o Camões. Mas o que o Camões estava
fazendo no meu banheiro? Ficou dias lá, me olhando”[26].
A partir de então, tomava banho fitando aquela figura enigmática, até que um
dia, com espumas brancas de sabonete espalhadas pelo corpo, veio-lhe um verso
em mente. Recitou com sotaque português: “Que este amor não me cegue, nem me
siga. E de mim mesma nunca se aperceba”. Se enrolou em uma toalha e saiu do
banho contente, pronta para começar a escrever as dez poesias do livro Cantares do sem nome e de partidas, que foi concluído em quinze
dias.
Entre as palavras
usadas estavam despedida, ausência, luto. Morte. Adeus, nunca mais. Nessa
época, teve a visão de uma moça, no chão de seu quarto. Cheia de sangue. Pensou
que fosse ela, um prenúncio de seu fim. Mas concluiu que não, não se parecia
com seu corpo, seu rosto. Um dia se passou e veio a notícia: uma jovem amiga de
dezenove anos havia sofrido um acidente de carro. Mirella, a filha mais nova de
Aristodemo Pinotti. Mirella havia partido. Cantares
do sem nome e de partidas foi dedicado à sua memória. “Eu não sabia porque
eu tinha escrito. Mas porque eu ia falar sobre a partida de alguém?”[27].
“Mirella, minha
amiga-menina
Pequena pastora das
manhãs de riso:
Guardo-te cheia de
luz
Dourada de doçura
Nas minhas manhãs
de dentro
Essas escuras,
essas do Nunca Mais
Pequenina pastora.
(...)
Livre da Terra,
entre os braços
De alguns
deuses-meninos
Minha amiga-menina
no sempre há de ficar.
Como era o sorriso
na tua boca
E como é a dos
amantes
A quimera louca,
essa quimera do NUNCA SEPARAR.”
[1] Agenda
Imprimo, 13 mar 1981. (Arquivo CEDAE UNICAMP)
[2] Agenda
Ótima, 21 set 1987 (Arquivo CEDAE UNICAMP)
[3] SÁ, Sérgio de. In: GRANDO, Cristiane. Amavisse
de Hilda Hilst: Edição genética e crítica. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São
Paulo, 1998.
[4] Luminosa Despedida, Léo Gilson Ribeiro, Jornal da Tarde,
04/03/89
[5]
MEDEIROS. Falações Hilstinianas. In: GRANDO, Cristiane. Amavisse de Hilda Hilst: Edição genética e
crítica. Faculdade de
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[16] CASTELO,
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[18] CASTELO, 30 out 1994
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[22] Id.,
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