“Um alquimista dizia: se você estiver fazendo um
trabalho realmente importante, onde estiver, as pessoas vão te procurar”.
Carl Gustav Jung (1875 – 1961)
Psiquiatra suíço.
Os primeiros anos da Casa do Sol foram marcados por grandes
encontros que perdurariam para toda a vida de Hilda Hilst. O primeiro deles foi
com Flika, uma vira-latas doada no final de 1967 pela jovem espanhola Violetta
Mora Fuentes. Violetta precisava deixá-la com alguém porque ela e seu marido
Gerts se mudariam para a Alemanha. Gerts ganhara uma bolsa de estudos em
Munique e não poderia levar animais. O casal entregara Flika a várias pessoas,
mas ela sempre voltava para a casa dos donos. Dante ficou sabendo do caso por
meio da firma de agropecuária Irmãos
Meirelles, em Campinas, onde comprava veneno contra formigas. Violeta havia
comentado, na firma, a necessidade de dar a vira-lata a alguém que morasse em
um sítio. Assim, ela não poderia escapar. Dante deixou o seu endereço e recebeu
Flika, que adaptou-se bem à Casa do Sol.
Um mês depois, Violetta fez uma visita a Hilda e convidou
seu irmão de dezesseis anos, José Luís Mora Fuentes, que morava em São Paulo,
para ir junto. Contou-lhe que ela era uma escritora que havia visto um disco
voador. Mora Fuentes adorava literatura e estava ansioso para conhecê-la. Assim
que entrou na Casa do Sol, a primeira coisa que ouviu não foi um cortês
cumprimento, nem uma breve apresentação. quando a anfitriã o viu, ficou
surpresa.
– Não é possível! Você é a cara de um amigo meu.
O amigo em questão era José Luiz Arcanjo, com quem havia
discutido. A briga foi o fim da amizade. Mora Fuentes se incomodou com o fato
de ser parecido com um desafeto de Hilda. Era muito magro, com a base do nariz
levemente larga. As pálpebras, um pouco inchadas, tornavam seu olhar afetuoso.
Tinha cabelos castanhos-escuros e franja comprida, que insistia em cair-lhe
sobre a testa, dividindo a raiz ao meio. Ficou acanhado com as comparações de
Hilda, mas ela não se cansava:
– Você é a cara dele, até o jeito de falar, de movimentar
as mãos! É ele!
José Luiz Arcanjo também gostava muito de mitologia. Os
dois nasceram no mesmo mês, sob mesmo signo e apreciavam o mesmo instrumento
musical: piano. Quando Dante chegou, Hilda fez questão de que ele não visse o
garoto.
– Dante, espere um pouco. Eu vou falar para esse meu amigo
(Mora Fuentes) se levantar e eu quero que ele se vire, para você dizer a pessoa
que ele te lembra.
Mora Fuentes se levantou da poltrona e Dante respondeu:
– É o Zé. Zé Luiz Arcanjo.
Naquela noite, Hilda não estava
esperando a visita de Violetta, mas de um astrônomo para falar sobre um
fenômeno que ela e o ex-amigo Zé Luiz teriam presenciado no céu de Campinas. Os
visitantes gostavam de sair na varanda da Casa para olhar a vista privilegiada que
se tinha do firmamento. Por ser uma região alta e escura, enxergava-se
perfeitamente as estrelas, que pareciam ainda maiores e mais próximas. Foi
assim que viram a constelação do Cruzeiro do Sul se movimentar. Uma estrela de
cada vez andava em direção a outra, a contornava e desaparecia.
– Você está vendo o que eu estou vendo? – Hilda perguntou
ao amigo José Luiz Arcanjo.
– As estrelas do Cruzeiro do Sul estão se movendo, mas isso
não pode acontecer, isso é impossível.
As estrelas voltaram ao lugar, como se nada houvesse
acontecido.
Hilda queria conversar com o astrônomo, mesmo sabendo que
ele não teria explicações para o fenômeno. Como ele não veio, o centro das
atenções agora era Violetta e o seu jovem irmão. Sentiram uma simpatia
instantânea, apesar de ela ser uma mulher de trinta e sete anos e ele um jovem
de dezesseis. Começaram a conversar, a falar, falar, falar sem parar, a noite
inteira. O garoto, principalmente, ouvia com atenção enquanto Hilda contava
entusiasmada a história do disco voador que havia visto um ano antes, quando
percebeu uma esfera luminosa no jardim. Mora Fuentes percebeu que ela lera
muito sobre o assunto. Havia dezenas de livros brasileiros e importados sobre
ufologia na sua estante, incluindo uma coleção da revista esotérica francesa Planet.
Achou aquela mulher iluminada pelos lampiões de querosene naturalmente sedutora
e de uma cultura impressionante. Ela o convidou para voltar outro dia, para
ficar um final de semana na fazenda. Ele aceitou prontamente.
O asfalto da estrada Campinas-Mogi Mirim, que leva à Casa
do Sol, era de péssima qualidade. Chegando ao km 121, era preciso trilhar mil
metros de estrada de terra à esquerda. Decidido a voltar à Casa, no sábado
seguinte, Mora pegou um ônibus de São Paulo a Campinas, e da rodoviária um
táxi, porque não existia ônibus que o levasse até a Casa.
Quando chegou, um empregado foi atendê-lo. Levou-o até a
varanda. Hilda se aproximou. Olhou-o, curiosa.
– Pois não, o que você deseja?
– Hilda, sou eu!
– Quem?
Ela não se lembrava mais. Não se lembrava da longa conversa
que tiveram, nem do convite que fez. E ele não era mais parecido com o tal do
José Luiz Arcanjo. Ele, que só veio porque ela pediu, porque ficou fascinado
por aquele ambiente, por aquela mulher. Agora, era como se tudo não tivesse
existido.
– Então desculpe... – lamentou virando-se
para trás.
– Não! Mas, se você veio, é porque alguma coisa tem para
você estar aqui.
Foi o segundo começo de uma eterna amizade. Hilda
acreditava que a Casa do Sol era mágica, que atraía as pessoas que tinham a ver
com a Casa. Alguns sentiam uma identificação instantânea com aquele lugar.
Outros acreditavam que era sombria e assustadora. Mora ficou encantado, achou “tudo uma delícia”.
Ficaram um ano se correspondendo por cartas. Ele estava
terminando os estudos, precisava ficar em São Paulo. Fazia o curso científico
de biofísica, queria ser médico. Mudou para o jornalismo, mas os melhores
professores foram presos ou deportados pelo regime militar. Deixou de estudar
como forma de não compactuar com aquela situação. Hilda o chamou para morar com
ela e dessa vez não se esqueceu do convite. Ela projetou a Casa do Sol pensando
em um ambiente que permitisse troca e vivência entre os moradores. Seu objetivo
era constituir uma comunidade que trabalhasse com artes.
Uma semana depois de completar 18 anos, Mora Fuentes foi
viver com Hilda Hilst. A Casa do Sol foi sua faculdade.
O lugar era freqüentado por artistas e teatrólogos
interessados no novo gênero literário escolhido por Hilda: a dramaturgia. A
escritora percebeu que a poesia não bastava para se comunicar com o público,
frente à repressão política do regime militar no Brasil. Tinha pressa de dar o
seu recado para pôr no palco; escreveu oito peças teatrais em dois anos. Para
evitar que seu trabalho fosse censurado, os personagens não receberam nomes.
Foram chamados de Ele, Homem, Pai, Noivo,
Juiz e as histórias eram tão cheias de metáforas e alusões que se tornaram
difíceis de ser narradas. Os grupos interessados em montar as peças
hilstinianas se encontravam com a autora para elaborar as cenas. A companhia Teatro Rotunda, liderada pela diretora
Tereza Aguiar, foi à Casa do Sol em 1968 para discutir O novo sistema, uma peça sobre a evolução do conhecimento do homem
e a organização da sociedade. O protagonista, Menino, representava a inconformidade com as regras do “novo
sistema”, e a Menina, a obediência ao poder, “um alerta para o risco de
desumanização do homem pela perda da liberdade do espírito” [1].
Entre os integrantes do Rotunda,
uma jovem de cabelos compridos descendo até a fina cintura e olhos azuis-claros
se sobressaindo entre as negras pupilas. Era a atriz e jornalista Ana Lúcia
Vasconcelos, que viria a ser uma das melhores amigas de Hilda. Ana adorava
literatura e dava aulas de teatro em uma escola de Jundiaí. Sentada no sofá da
sala com o grupo, lia e relia os textos da peça juntamente com a autora.
Ela nunca havia ouvido falar daquela mulher afetuosa que
estava à sua frente. Chamava a todos de “lindinha”, “queridinha”, “amor”.
Também nunca esteve em um lugar tão mágico. Em uma das visitas à Casa do Sol,
Ana Lúcia sentiu que estava penetrando em um outro mundo, como se começasse a
compreender o fluxo do universo, enquanto seus olhos percorriam as linhas de um
livro sobre o psicanalista Carl Gustav Jung. Parecia que havia entrado em outra
dimensão. Para ela, na Casa do Sol, era fácil entrar em outro espaço-tempo.
Ana e os integrantes do grupo voltaram outras vezes para
conversar sobre filosofia e literatura. Livros de Jorge Lima, Fernando Pessoa,
Franz Kafka, Jean Paul Sartre se espremiam na do lado de trás da lareira de
granito da sala, que formava uma alta estante no centro da biblioteca,
dividindo os dois ambientes. Astrologia, discos voadores e projeção astral
também faziam parte das leituras, eram regadas a vinho ou suco e aperitivos.
Não havia cerimônias: era tudo anti-convencional, o que deixava todos
extremamente à vontade para falar o que quisessem, inclusive palavrões, desde
que bem colocados no contexto do assunto, como fazia a anfitriã. “No cu, ó, no cu, ó, ó”[2]
– Hilda dizia e fazia o gesto com as mãos que para os
norte-americanos quer dizer “ok”, e – “bruuu!”
– assoprava no meio.
A Casa era freqüentada por pessoas de variadas opções
sexuais, que ali tinham liberdade de pensamento. Era possível conversar sobre
qualquer assunto, inclusive sexo, sem censura. Ana Lúcia Vasconcelos ouvia às
vezes, em tom de brincadeira “Você,
que tem amizade com a Hilda, deve gostar de sacanagem”. A liberdade de
pensamento despertou a imaginação das pessoas. Uma visitante mirabolou um plano
aproveitando-se dos boatos para atiçar a fantasia do marido quando chegasse em
casa: fingiu que tinha sido picada por uma abelha no pescoço e pediu para
alguém chupar o local para tirar o ferrão e assim, ganhar uma marca.
Todos os visitantes eram estimulados a falar sobre si,
assim como Hilda fazia com transparência. Ela os incitava às trocas de idéias,
valores e pensamentos, indagando-os sobre suas vidas. O outro passava a
ser a pessoa mais importante naquele momento, dos amigos intelectuais aos
empregados da casa. A escritora sentia necessidade de conhecer as inquietações
mais interiorizadas das pessoas; isso a ajudava a compor suas histórias e
personagens que revelam as falhas, as maravilhas e a obscuridade do homem.
A convivência era imprescindível para o seu trabalho.
Convidava pessoas interessadas em artes para viver na Casa, como o escritor
gaúcho Caio Fernando Abreu, que morou com Hilda por três anos. Caio foi apresentado por Ana Lúcia
Vasconcelos, que o conheceu durante uma palestra com o crítico literário Léo
Gilson Ribeiro, realizada para os vencedores do concurso de jornalismo da
Editora Abril.
– O que você acha da Hilda Hilst? – Ana perguntou ao
palestrante.
– Uma das maiores escritoras brasileiras.
Léo Gilson ficou interessado em saber quem era aquela
estudante que conhecia Hilda. Ao final da palestra, ele procurou por Ana Lúcia
juntamente com Caio Fernando Abreu, que, aos vinte anos, participaria da equipe
pioneira da revista Veja e viria a
ser um dos principais contistas do país. Quando Ana contou que freqüentava a
casa da escritora, os dois ficaram entusiasmados. Em um dos finais de semana
seguintes, pegaram uma carona com ela até a Casa do Sol. Caio procurava não
falar muito. Tinha uma voz fina, num ritmo oscilante que o deixava intimidado.
Sua maior e mais visceral forma de expressão era a escrita. No mesmo dia, havia
outro visitante que acusava Hilda de aristocracia:
– Você escreve porque é rica e não precisa trabalhar.
– Talento e sensibilidade não têm nada a ver com dinheiro[3]
– ela respondeu.
Caio saiu em defesa de Hilda e ganhou sua confiança.
Convidou-o para fazer parte dos moradores da Casa do Sol. Suas sobrancelhas
negras e volumosas davam-lhe um ar mal humorado. Passava a maior parte do tempo
lendo ou escrevendo sozinho. Para se desinibir e treinar a articulação da fala,
Hilda lhe deu um gravador de presente para que entrevistasse os escritores que
freqüentavam o local. As visitas vinham e iam e ele nunca começava o exercício.
Não tinha coragem de expor sua voz. Já havia tentado de tudo, inclusive
tratamento com fonoaudiólogos em Porto Alegre, onde morava antes de vir para
São Paulo, mas nada adiantava: as palavras saíam finas e roucas. Somente uma
mágica as tornaria firmes e grossas.
Os moradores da Casa do Sol se abrigavam sob os acolhedores
galhos da figueira, no canto esquerdo do jardim, para fazer pedidos. Para
construir a Casa, Hilda solicitou à mãe três alqueires de terra da Fazenda São
José. Quando foi escolher a área desejada, ficou com o terreno em que se
encontravam as figueiras imensas grudadas, unas. Em comunhão, eram consideradas
uma única árvore, que destoava na solidão do campo, assim como a figueira sob a
qual Siddharta Gautama recebeu a iluminação para propagar a doutrina budista.
Siddharta estava debaixo da árvore, com o seu cão Consolador acomodado em seus pés, quando
delicados fios dourados desceram do espaço suavemente, baixando sobre a sua
cabeça. De repente, ouviu uma voz:
“Os fios te encontraram, afinal! Por sete longos anos
andaram à tua procura. Sim, por sete anos baixaram sobre ti, sem todavia
conseguirem firmar contato, mas vê-se que o teu envoltório os repelia. Tão
somente hoje é que te abriste para a Luz e, de tal modo, que eles puderam enfim
baixar sobre ti!”
Siddharta pediu ao deus Brahma para lhe mostrar sua missão
na Terra. Começou a ouvir ressonâncias supraterrenas e uma luz rosada o
envolveu, espalhando-se ao redor como se fossem pétalas de flor-de-loto. O
rosado foi se transformando em outras cores até chegar ao branco imaculado. A
voz continuou:
“Conserva a pureza que te envolve. (...) Espalha a
sabedoria que recebeste de Brahma”.[4]
Em uma noite de lua cheia, Caio fez três desejos sob a
árvore da Casa do Sol, todos realizados: vencer o prêmio Fernando Chinaglia da
União Brasileira de Escritores, conseguir um emprego no Rio de Janeiro e ficar
com a voz grossa.
Na noite posterior aos pedidos, Caio chamou Hilda no
escritório. Ele estava segurando o gravador. Finalmente o havia usado.
– Hilda, escuta.
Caio apertou o
play. Na gravação, uma voz grossa digna de repórter radialista.
– Quem você acha que é?
– Um locutor.
– Não, sou eu!
Chamaram Mora
Fuentes para ouvir a novidade. Caio falou pela primeira vez com sua voz
imponente. A amiga aconselhou-o a não usar mais a antiga, para que o novo
timbre tomasse conta da sua personalidade. Quem o escutava não poderia imaginar
que seu jeito de falar havia sido outro.
Hilda gostava de
levar as pessoas para debaixo da figueira, para as inspirar e torná-las mais
férteis e iluminadas como Buda.
Durante a iluminação de Siddharta sob a árvore, as suaves
vibrações deram lugar a sons possantes. Quando olhou para cima, viu na direção
de sua cabeça o céu, antes coberto por estrelas, se abrir. Lá no alto, o vulto
de um templo habitado por seres translúcidos de asas brancas, que abriam uma
cortina de ouro.
A voz procedeu:
“O senhor dos mundos que te mandou preparar e conduzir,
(sic) chama-te agora para o seu serviço.(...) Destarte a sã Doutrina aos poucos
se propagará, como raízes de uma grande árvore”.
Após a revelação, Siddharta ergueu os braços,
segurando os galhos da figueira sob a qual estava, e saboreou os seus frutos.
“Eu te agradeço, árvore, por tudo quanto me deste.
Chamarei-a, de agora em diante, de árvore
de Brahma.”[5]
Hilda abraçava a figueira da Casa do Sol em busca de bons
fluidos. A árvore atrai várias plantas que sobrevivem encostadas em seu tronco
áspero ou entrelaçadas em seus galhos, até mesmo nos mais altos, onde deixam
escorrer suas raízes. Embaixo da sua sombra, foram construídas quatro cadeiras
baixas de pedras e uma mesa de pés de granito rosa e tampo de mármore, que
acabou partido por um dos ilustres visitantes da Casa, o comediante e
apresentador Jô Soares, numa tentativa arriscada de sentar-se em cima do
improvisado móvel. Mesmo sem o tampo da mesa, aquele era um dos lugares
preferidos da dona da casa.
Caio, Mora, Hilda e Dante costumavam caminhar à noite pela
fazenda. Era uma região isolada, não havia vizinhos. Até onde a vista
alcançasse, era um lugar livre no qual se podia andar tranqüilamente, sem
encontrar alguém. Não havia luz alguma lá fora, apenas a claridade dos lampiões
da casa, apagados naqueles momentos. Ficavam somente com o céu. Queriam ver a
noite. Iam à varanda ou ao pomar. Um extenso pomar, do lado direito da casa. Pulavam
uma cerca que separava a Casa dos limoeiros, das mexeriqueiras e de uma
cheirosa caneleira, para que os cachorros não avançassem na área. Andavam entre
os galhos conversando sobre literatura, histórias amorosas e fatos incríveis.
As noites pareciam intermináveis para Caio. Eram
deliciosamente extensas, à procura de estrelas cadentes e discos voadores.
Recordaria-se do barulho dos seus passos sobre os cascalhos cor-de-rosa e do
reflexo da luz dos lampiões nos loiros cabelos de Hilda para sempre. Depois que
foi embora da Casa do Sol, os dois continuaram a se corresponder por cartas e
voltava para visitas.
A amizade com Hilda perdurou até
literalmente o fim de sua vida. Combinaram que, quando um deles morresse, iria
aparecer para o outro com um sinal vermelho. O “vermelho da vida”.
Caio voltou para Porto Alegre antes de ser contagiado pela
mania do sotaque alemão. “Oh, eu
pensarr que o escrritorr...” – começou Mora Fuentes brincando. Todos se
contagiaram com a novidade e o “rr” ficou impregnado na boca dos moradores da
Casa. Quando davam por si, estavam falando seriamente desse modo. A pronúncia
germânica passou a ser um grande problema.
– Quando eu falar assim, você me pára, por favor.
– Oh,crrarro,eu parrarr, pode ficarr trranqüilo.
Hilda aproveitou a brincadeira do sotaque, anos depois,
para tornar suas crônicas mais hilárias, como neste trecho de Cascos e Carícias.
“Baixou o Dr. Fritz!
Um senhorr insinuarr eu gostarr de ovos podrres e trraques
desenhorr Henrricas oitavas. Non senhorr, non gostarr. Mas, crrionça, senhorr
non dava trraques? Non tirrava melecas do narriz? Non?”[6]
Caio também escapou dos apelidos que começaram a fervilhar
na imaginação de Mora Fuentes. Eram mútuos “elogios”. Ele era o “Sapo”. Hilda,
a “Lacraia”. Acreditava que Hilda era muito mais terrível que ele. “Lacréé!” – chamava
afrancesando o meigo codinome. Lacraia é um bicho venenoso que ataca. O sapo
solta o veneno da bolsa somente para se defender. O Sapo apenas se protegia da
Lacraia. Além disso, Mora adorava os anfíbios saltitantes. Antes de ir para a
Casa do Sol, tinha 37 sapos, 17 rãs e mais de 30 pererecas soltas no jardim
central de sua casa. Porém, ainda falta um animal nessa história: a Lebre. Quem
a representava na Casa era uma assídua visitante: a escritora Lygia Fagundes
Telles. Ela era formada em educação física e se preocupava muito com a boa
forma. Tinha uma agilidade impressionante, dava várias voltas ao redor da Casa.
Lygia conheceu Hilda no verão de 1950, durante o lançamento
de seu livro O Cacto Vermelho, no
pomposo chá do Mappin. “Estava conduzindo Cecília Meirelles, que usava um
turbante negro no estilo indiano, para a cabeceira da mesa, quando apareceu uma
jovem loira e fina, com grandes olhos verdes e uma expressão decidida”. Tão
decidida que beirava a arrogância. Estava sem maquiagem, com os cabelos presos
em uma larga fivela.
– Sou Hilda Hilst, poeta.
Sim, “Poeta”. Hilda acreditava que escrever era um ato
masculino por ser uma atividade tão intensa e desgastante. “Escrever um livro é
como pegar na enxada, e se você não tem uma excelente reserva de energia, você
não consegue mais do que algumas páginas, isto é, mais do que dois ou três
golpes de enxada”. “Poetisa” inferiorizava o trabalho de escritora. “Eu sempre
senti que, digamos, a intensidade desse meu pensar era demasiado para o outro
se posta numa mulher”. Diziam que ela era bonita demais para escrever o que
escrevia e “aí fez tudo para enfeiar mesmo”.[7]
Não era uma feminista, apesar de fumar de piteira e esbanjar palavrões antes
delas.
“Eu era muito independente, saía à noite,
sozinha com meu namorado, coisa que as pessoas achavam horrível. (...) Tudo o
que eu falava achavam horrível. Tinha mania de falar tudo tão claro que as
pessoas não gostavam de mim. Quer dizer, as moças grã-finas não gostavam muito
de mim. Gostava da faculdade de direito porque eu me divertia muito”.[8]
Hilda entrou
na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 1948, influenciada pela mãe,
que acreditava que ela precisava de estudos para se tornar forte e suprir a
carência que tinha do pai. Durante o curso, publicou seu primeiro livro de
poesia, Presságio, pela Revista dos Tribunais. Assim, foi escolhida pela faculdade para
homenagear a “ex-aluna” de direito Lygia Fagundes Telles.
– Vim saudá-la em nome da
nossa Academia do Largo São Francisco.
Lygia abraçou-a como se pressentisse que a amizade seria
para toda a vida.
–Minha futura colega!
Hilda sorriu.
“Quando se
levantou, bastante emocionada para fazer o seu improviso, ocorreu-me de repente
a poética imagem da haste delicada de um ramo tremente de avenca, aquela planta
um tanto rara, mas muito cultivada pelas freiras.”
A partir daquele dia, as duas nunca mais deixaram de ser
falar. Por telefone, por cartas ou pessoalmente, a conversa era confidencial.
Lygia estava certa, Hilda era
delicada como uma avenca em seus gestos. Andava com suavidade e elegância. O
cigarro era levado à boca num movimento demorado, do mesmo modo que exalava a
fumaça dançante. Seu toque era tenro e meticuloso. Todavia, seus pensamentos
eram atormentadores.
“Eu era uma pessoa muito tumultuada (...) O tempo todo
perguntante, o tempo todo numa ansiedade que não era visível exteriormente. Era
uma tensão íntima muito potente lá dentro que não parava de circular, era como
se o sangue não ficasse em um lago represado, mas corresse em alta velocidade”.[9]
A
turbulência interna era transportada para as letras golpeadas no papel por meio
das hastes de ferro da máquina de escrever Olivetti Lettera 22, que usou por
toda a vida. Antes de começar a dedilhar o teclado, sentia medo. Chamava pelos
seus guias, pedia inspiração e poder para escrever.
Suas mãos começavam trêmulas a apertar os botões. O
resultado do trabalho “é aquele instante antes da flecha ser lançada, é a
tensão do arco, a extrema tensão, o sol incidindo no instante do corte, é a
rapidez da navalha, que com um golpe lancinante, fulminante, corta teu pescoço”[10].
A pulsação da vida era transmutada em ficção.
“Meu filho, eu preciso escrever, eu só sei escrever as
coisas de dentro, e essas coisas de dentro são complicadíssimas, mas são... são
as coisas de dentro. E aí vem o cornudo e diz: como é que é meu velho, não
começa a fantasiar, não começa a escrever o de dentro das planícies que isso
não interessa nada (...) E todos os dias o rugido, você está com uma úlcera na
córnea, e por isso eu te aconselho a escrever daqui por diante coisas de fácil
digestão, coisas que você pode fazer sem esforço, acaba com a coisa de escrever
coisa que ninguém entende, só você é que entende.(...) É para o teu bem que te
pedimos novelinhas amenas, novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião, na
cápsula”[11]
Os acontecimentos externos
também a comoviam. Cada vez que lia As
veias abertas da América latina, de Eduardo Galeano, um clássico do
pensamento de esquerda, Hilda chorava. “Ele me faz sofrer muito, tenho ele
sempre perto de mim”.[12]
A escritora produziu textos sobre a repressão
militar, por meio de oito peças teatrais sobre o nazismo, associando-o à ditadura,
mas conseguiu publicar somente uma, O Verdugo, que recebeu o Prêmio
Anchieta. O motivo alegado pelas editoras era o medo da censura.
Dante e Hilda se casaram no final de 1968. O noivo usava
uma blusa de gola alta preta e a noiva uma larga camisa de seda branca
estampada de pêssego.
Eles disseram “sim” ao juiz na frente de sessenta
convidados que se amontoaram entre a sala e a sala de jantar, onde firmaram a
união. Decidiram legalizar a situação quando Hilda ameaçou de morte um vizinho
que insistia em derrubar as cercas da fazenda para levar seus bois ao pasto. Os
animais invadiam o terreno e se aproximavam da Casa, danificando as plantações.
Hilda ficou furiosa.
– Se fizer isso de novo eu passo fogo em você!
O homem deu queixa e
o episódio foi parar na delegacia. Dante saiu em defesa da namorada até que o
delegado levantou uma questão:
– O que você é dela, afinal?
Agora, eram “bossa casados”.
[1]
VINCENZO, Elza Cunha. Um teatro de
mulher. São Paulo: Perspectiva, 1992
[2]
VASCONCELOS, Ana Lúcia. Entrevista concedida em 05 ago 2005
[3] ABREU,Caio
Fernando. Um pouco acima do insensato mundo. LEIA. São Paulo, fev 1986.
[4] ANÔNIMO.
Buddha. 5. ed. Embu:
Ordem do Graal na Terra, 2002. p.57
[5] Id., Ibid., p.60,61
[6] HILST.
Hilda. Cascos e Carícias. São Paulo: Nankin, 1998. p.28
[7] FURIA, Luíza Mendes. Hilda e seus personagens não
param de pensar. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 31 mai 1997
[8] GRANDO,
Cristiane. Amavisse de Hilda Hilst: Edição genética e crítica. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1998.
[9] MASCARO,
21 jun 1986
[10] Id..
A Mãe do Sarcasmo. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 15 mar 1980
[11] Id. , Ibid.
[12] Id. , Ibid.