Cap. 3 - Morte


“O medo da morte é a verdadeira fonte de nossa fragilidade”.
Ernest Becker
Antropólogo e psiquiatra norte-americano

Suécia, verão de 1959. Friedrich Jungersson, pintor sueco que gostava de ler sobre budismo e hinduísmo, foi passar o final de semana em sua propriedade próxima de Estocolmo, em Moinbo, uma região isolada com um imenso bosque habitado por pássaros cantantes. Entre pinturas e leituras, Jungersson teve a idéia de registrar a melodia das aves. Munido de seu gravador ligado, foi até o bosque captar o som da mata. Ao ouvir a fita, percebeu que, nos intervalos entre um canto e outro, não se ouvia o ruído dos seus passos ou o murmúrio do vento batendo sobre os galhos das árvores, mas vozes humanas falando em alemão, sueco e outras línguas.
A fita deveria estar com algum defeito de fabricação ou estragada. Foi à fabricante BASF atestar se as fitas eram mesmo virgens. Trocou por outra nova e as vozes persistiram. Agora eram timbres familiares, de amigos mortos dizendo coisas que só ele e o confidente sabiam, e mensagens sobre a morte: “A morte não existe” – dizia uma delas.
Cada vez mais interessado, continuou a experiência. As vozes sugeriam que ele acoplasse o gravador no rádio e os espíritos poderiam usar a energia das ondas hertzianas para melhorar a comunicação. Os resultados foram estudados pelo Instituto Max Planck, na Alemanha, e descritos por Jungersson no livro Telefone para o Além. Hilda achava um título infeliz, pois tirava toda a credibilidade do experimento, mas ficou fascinada pelo assunto. Assim que a energia elétrica chegou à Casa do Sol, Hilda começou a fazer gravações com um rádio comum de seu marido, Dante Casarini. Depois a experiência se tornou mais sofisticada: comprou um gravador de rolo e o colocou em cima da escrivaninha que ficava ao lado da sua mesa de trabalho, iluminada por um abajur. Não escrevia mais como antes. Tinha grande necessidade de provar a imortalidade da alma por meio do fenômeno que ficou conhecido internacionalmente como EVP (Electonic Voices Phenomena - Fenômeno das Vozes Eletrônicas).
Não podia acreditar que, tendo sentido tudo o que sentiu, visto tudo o que viu, e tido “compaixão de espremer o coração e as vísceras”, de repente, iria para a terra, apodreceria e “fim, zero, terminou.”[1]
 Para fazer as gravações, Hilda convidava alguém para conversar com ela e apertava o record do rádio. A fala precisava ser clara e pausada. Os dois interlocutores não podiam dizer ao mesmo tempo para não causar confusão na hora de ouvir a fita. Também gravava o chiado do rádio entre uma estação e outra. Depois de terminada a gravação, ouvia-se tudo várias vezes até identificar nas pausas da conversa chiados, batidas e ruídos que depois de muitas vezes escutados se tornavam inteligíveis e identificados pelo ouvido, como vozes humanas dizendo frases inteiras ou palavras, anotadas sempre que continham revelações. Nem sempre os ouvintes entravam num consenso sobre aquilo que escutavam. Mora e Hilda costumavam discutir o conteúdo captado: cada um ouvia uma coisa diferente.
– Sapo, você é surdo, você não escuta.
– Claro que eu escuto. Eu escuto o que eu escuto!
Depois de seis meses de discussão, Mora decidiu abandonar os experimentos e deixar que apenas Hilda comandasse as gravações.
– Vou parar de participar, senão a gente vai brigar de morte e nunca mais vai se falar. – determinou.
 Hilda passava horas, dias inteiros para conseguir uma palavra, uma frase. Um fone de ouvido branco, imenso, lhe cobria toda a orelha e parte de sua cabeça. Vestia um camisão claro muito largo com os punhos apertados e, por cima, túnica com desenhos de pequenas folhas que formavam um harmonioso mosaico. Colares compridos pendiam de seu pescoço. Enquanto uma mão relaxada com unhas compridas e arredondadas segurava um Chanceller[2], longo a outra mexia no rádio com delicadeza. A fumaça do cigarro desenhava espirais e se expandia pelo escritório. O marido se afligia com o tempo em que deixava de se comunicar com os vivos para captar vozes enigmáticas.

Hilda continuava sua busca pela prova da imortalidade da alma. Desde criança, a morte a abalava muito. Sempre se perguntava: “O que é morrer?”, “Mas como morreu?”. Seus amigos morreram. Lupe, Arnaldo, Anatol, Clélia, Mariana, Frederico Barros.
E sua mãe.
Bedecilda Vaz Cardoso morreu em 1970, aos 69 anos. Era uma portuguesa que não perdeu o doce sotaque ao longo dos anos no Brasil. Não gostava do seu nome, por isso apresentava-se como Beatriz. No seu primeiro casamento, quando morava em Jaú, teve apenas um filho, Ruy Vaz Cardoso. Depois, apaixonou-se por Apolônio de Almeida Prado Hilst, homem inteligente, de olhar fixo e melancólico. Na Fazenda Olho da Itapuí, Apolônio cultivava 200 mil pés de café. A família Almeida Prado dominava Jaú política e economicamente desde a República e defendia a endogamia. Um Almeida Prado só deveria se casar com uma Almeida Prado. De qualquer forma, Apolônio era contra o matrimônio.

“O casamento é uma imoralidade. Não é seu maior mal. Porque é também, uma vaudevilesca grosseria. Faz do que temos de mais sagrado, o amor, uma coisa legal, isto é, pública e indecente” [3].

Assim como sua mãe, Hildinha não era querida pela família paterna.

“Eu ficava muito triste em Jaú. Quem gostava de mim era tia Genésia, viúva de um irmão de meu pai. Me punha no colo, me agradava, não deixava que meu primo-irmão fizesse malinhezas comigo. Minha avó era severa, fechada, eu tinha medo dela. Minhas duas tias, Nina e Margarida, quando as conheci, aos sete anos, estiquei a mãozinha para cumprimentá-las e elas me deixaram de mãozinha abanando, porque não gostavam da minha mãe. Fiquei de mãozinha abanando, sem entender. Duas boas biscas, tia Nina e Margarida. Tia Zoé também sempre foi seca comigo. Eu chorava muito em Jaú.”[4]

Bedecilda se separou do Apolônio quando Hilda tinha menos de três anos, mas não parava de falar dele e do amor que sentia. Foi morar em Santos, na rua Vicente de Carvalho, nº 32, com ela e seu filho mais velho, Ruy. Era uma mulher livre, tinha namorados, não quis se casar nunca. Aos 50 anos, Bedecilda sofreu um derrame. Os médicos não davam esperanças. Desesperada, Hilda fez uma promessa a Deus para não perder sua mãe. No dia seguinte, ela estava melhor e se restabeleceu progressivamente.
Hilda não estava preparada para perdê-la, uma mãe carinhosa e doce. Mas perdeu. Depois do derrame, Bedecilda ficou amarga, amarga demais. Existia algo de maldito naquele pedido que fez a Deus em um momento de agonia. Sua mãe nunca mais foi a mesma pessoa. Agora era agressiva, tinha um humor difícil, devido à arteriosclerose progressiva. A doença fazia com que sentisse ódio por quem antes mais amava. Saíam constantemente da boca de Bedecilda palavras ácidas e a fumaça cinza do cigarro. Hilda tremia quando ela se aproximava. Percebeu que a esclerose podia levá-la a fazer algo contra si própria. Bedecilda não aceitava mais ordens, expulsava os empregados contratados para cuidar dela. Saía de camisola da casa sede da Fazenda São José, na mesma rua da Casa do Sol, e andava pelo campo de madrugada. Foi internada aos 50 anos no sanatório Bierrenbach de Castro, em Campinas, o mesmo em que Apolônio Hilst ficou até a morte.
 Muito envelhecida e dopada pelos comprimidos, nada restava de sua identidade. Dante estava ao seu lado dez minutos antes de ela morrer. Viu quando a última lágrima escorrer dos seus olhos, derramando o fim de sua história.

Três anos depois, Hilda queria entrar em contato com a mãe através do Fenômeno das Vozes Eletrônicas. Ela e seu sobrinho Roberto Vaz Cardoso estavam prontos para mais um experimento em transcomunicação. Com o gravador de rolo no ponto para captar as ondas radiofônicas, Hilda pergunta por sua mãe. Roberto faz um desejo.
            – Espero que esteja tudo bem, que a senhora esteja feliz – diz Roberto e faz uma pausa antes de continuar a frase. Nesse tempo, Hilda ouve um “sim”, que acredita ser a voz materna - e que continue zelando por nós – finaliza Roberto.[5]
A experiência era importante para Hilda. Assim, não se precisaria mais de médium para provar a vida após a morte. Bastaria um aparelho que não poderia ser acusado de mentiroso e histérico.
– Você deve mandar alguém subir na figueira para irradiar as interferências – brincou seu amigo Newton Bernardes, físico da Unicamp – Se isso tudo for verdade, a gente tem de se sentar na calçada e repensar toda a física, Hilda.
– Pois sente-se.
A amiga Ana Lúcia Vasconcellos a apresentou a César Lattes, um dos maiores físicos do país. Ana Lúcia era jornalista e o entrevistou em outra ocasião. César causou uma mudança na visão do mundo subatômico com um experimento que demonstrou que a matéria não se resume a arranjos de prótons, elétrons e nêutrons: descobriu-se a existência do méson pi. Hilda acreditava que a ciência poderia provar a imortalidade da alma. Leu as obras do físico Stephane Lupasco, defensor da idéia de que a alma é feita de matéria quântica.
 Ana Lúcia levou Hilda até a casa de Lattes. Animada, contou todos os detalhes de suas experiências. Esperava que ele se interessasse pela descoberta. Desestimulador, ele declarou:
– Hilda, a física ainda está na infância.
César Lattes e sua esposa, Martha, foram jantar na Casa do Sol no dia 23 de março de 1977. Ouviram algumas fitas, cinco gravações. Lattes bebeu, teve dor de cabeça e demonstrou pouco interesse pelos experimentos. Em 1979, Hilda voltou a procurá-lo, mas foi ele nulo em relação à experiência. Ela reagiu com agressividade. Chorou quando voltou para casa.

Hilda pediu auxílio de outros amigos que eram físicos como Mário Schemberg, considerado pelo gênio Albert Einstein um dos dez melhores cientistas do planeta. Mário era professor da Unicamp e Hilda pediu para que lhe emprestasse a Gaiola de Faraday (aparelho semelhante a uma gaiola que isola qualquer objeto colocado em seu interior dos sinais eletromagnéticos externos), para realizar a transcomunicação sem interferências de ondas de rádio e tv.
– Hilda, se eu pedir a Gaiola de Faraday para essa experiência, perco meu emprego. Já é tão difícil falar com os vivos, imagine com os mortos.
Era difícil falar com os vivos. Mário Schemberg e Hilda falavam para uma platéia de físicos e estudantes na Unicamp na palestra inaugural do trabalho de Artista Residente, do qual Hilda participou na universidade em 1982. A escritora falou sobre o sentido das palavras, inclusive as escatológicas, e não se esqueceu de mencionar seus experimentos. No meio da exposição, notou que um físico presente caçoava de suas idéias, ao mesmo tempo em que insistia em coçar as virilhas. Risonho, questionou-a com ironia:
– Quer dizer que a senhora acredita realmente na imortalidade da alma? 
– Eu acredito na imortalidade da minha alma, porque se o senhor continuar apenas rindo e coçando o saco, sequer constituirá uma alma.[6]
Hilda acreditava que era preciso construir uma alma, para não correr o risco de morrer sem, ou ser constituída de uma matéria tão primitiva que a energia acabaria por se espalhar. Para ela, Bedecilda tinha constituído uma alma. Acreditava que o “Sim” captado pelo gravador era mesmo de sua mãe. Hilda sentia sua falta. Em um desses momentos de saudades, em 1973, Hilda relê uma das cartas que recebeu de Bedecilda quando era interna no Colégio Santa Marcelina, em São Paulo.

Hilda Hilst foi uma das internas no colégio de freiras Santa Marcelina, em São Paulo. Chegou em 1937, aos sete anos, vestida com um casaco cor-de-rosa. De mãos dadas com sua mãe, subiu vários degraus de pedra e chegou até uma porta de vidro, onde foram atendidas por duas freiras, como mostra esse trecho do conto autobiográfico O Unicórnio:

“Minha filha parece tão pequena...aliás...é mesmo muito pequena...tem mais alguma menina dessa idade? Lógico, a senhora quer vê-las? Chamam-se Lina e Margot. Minha mãe continua: a minha filha é tão delicada... tão... Mas nós todos somos muito delicados, o ser humano  é muito delicado, o colégio está cheio de delicadeza os azulejos são azuis e delicados, a delicadeza é uma maneira muito agradável de ser”.[7]

    Hilda admirava sua mãe. Sentia saudades do seu “cheirinho cor-de-rosa, do lenço perfumado, dos papéis fazendo barulho dentro da bolsa.”[8] Recebia sua visita nos finais de semana. Bedecilda chegava com um sorvete em punho. Hildinha abria os braços para abraçá-la.
– Não, não, pega o sorvete, senão vai derreter.
Como era gelado aquele sorvete!
“As meninas que não estudam nunca serão felizes” anunciou sua mãe na carta. Hilda estudava, estudava muito. Mas freiras do colégio propunham problemas considerados impossíveis para ela. “Eu tenho três galinhas, uma ficou doente, e morreu, outra desapareceu. Com quantas galinhas eu fico?”.
Ela se desesperava porque queria saber a razão desses fenômenos.“Por que deixaram a galinha morrer? Por que descuidaram da outra para que sumisse?”. Achava as freiras horríveis.[9] Pedia para sua mãe dizer a elas que era uma garota retardada.
   – Não posso dizer isso, minha filha. Retardadas são aquelas pessoas que dizem “ããã”...
  – Mas ela é a menina mais inteligente da classe, só que não pode ter tantas coisas assim. – respondeu uma das freiras do colégio Santa Marcelina, indagada sobre o fato de Hilda achar que tinha problemas mentais. Assim, sua mãe cancelou as aulas de francês e alemão. Só ficou com as de piano. [10]
Amor. Bondade. Compaixão. Hilda queria compreender o mundo e a humanidade. Lia em média oito horas diariamente. Depois de escrever pela manhã, passava o resto do dia lendo autores como Ibsen, Tchekhov, Balzac, Stendhal, Goethe. Parava às vezes para tomar um lanche ou conversar na varanda e voltava para o universo das palavras. Sociologia, física quântica, astronomia, filosofia, ensaios. Chegou a reunir quase duzentos títulos nas estantes de pedra do lado de trás da lareira. Desejava conhecer o que foi escrito e vivido pelos grandes pensadores. Sentia interesse pela loucura do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, achava-o “um louco deslumbrante”.[11] Wittgenstein sofria de depressão. Eram raros os dias que não pensava em suicídio. Durante a primavera de 1913, submeteu-se a várias sessões de hipnose para conseguir obter respostas às questões lógicas que fervilhavam em sua mente. Tinha como objetivo compreender o limite e a estrutura do pensamento e da linguagem: “não busqueis o significado, buscais o uso” [12] – ensinava.
Quando soube que estava com câncer, não se chocou. Disse que não queria continuar vivendo. Em 27 de abril de 1951, seu médico informou que a enfermidade havia se agravado e o fim estava próximo. Wittgenstein respondeu: “Ótimo”.
Hilda se emocionava com o filósofo Sören Kierkegaard, que dizia que “viver é sentir-se perdido”. Ela acreditava que era preciso “enfrentar a angústia de estar perdido, quebrar-se, morrer para verdadeiramente ser”.
 O existencialista Kierkegaard se contrapõe ao “penso, logo existo” de René Descartes ao dizer “sinto, logo sou”. “Perdido no labirinto do processo mecânico, o homem não só se encontra desamparado, mas quase desesperado. Sua única esperança está na compreensão da própria existência, que é a única realidade finita”[13]. Essa compreensão, segundo Kierkegaard, seria alcançada não pela razão, mas pela relação do homem com o divino.
Dia 23 de agosto de 1973, como de costume, Hilda sentou-se em sua minúscula cadeira quadrada e baixa de madeira para ler o jornal do dia. Notícias sobre a repressão Russa. O físico Andrei Sakahrov[14] descreve seu país como um cárcere com duas zonas de intensidade: o cárcere propriamente dito, em que o Estado Soviético exerce sua ferocidade, e todo o resto da população russa que não dá um passo sem que o Estado ordene. Para o autor, tudo é proibido para os russos que, massacrados pelos longos turnos de trabalho, não têm tempo ao menos para rezar.[15] Rezar, para transcender. Hilda pensa: é isso que os políticos querem, que o homem se distanciem do espírito. Pressente que o planeta Terra não resistirá à loucura dos homens, por isto, seu personagem Jozú preferia ficar no fundo do poço seco com seu rato, à margem de toda esta confusão.

O Grande-Pequeno Jozú,[16] o encantador de ratos, mora dentro de um poço com um roedor que dá piruetas em um balanço, dentro de uma caixinha de vidro. Só consegue pensar “bonito” quando está lá dentro, no fundo.

“Dentro do poço seco eu sou mais do que o Jozú encantador de ratos, mais alguma coisa que eu não sei o que é. Sou mais. E digo palavras estranhas e penso de um jeito que fora do poço eu não penso”.[17]

Jozú, como outros personagens, era uma resposta contra a repressão militar. Mesmo assim, existiram pessoas que taxavam Hilda como alguém que se recusava a participar ativamente dos movimentos contra a ditadura. Ela recebia essas críticas de curiosos que iam à Casa para conhecê-la.
As duas porteiras de madeira que ficam do lado direito da entrada na Casa do Sol passavam a maior parte do tempo estendidas para fora, convidando os raros transeuntes à entrada. Às vezes, eram fechadas para evitar que os cachorros se aventurassem mato adentro. Curiosos apareciam na Casa esporadicamente. O ambiente místico era um grande atrativo para os hippies cabeludos que se embrenhavam pelas estradas à procura de novas vivências. Uns ficavam duas, três horas. Outros, meses, anos. Sempre que um desconhecido chegava, os moradores se recolhiam a seus quartos, inclusive a ilustre anfitriã Hilda. Detestavam as visitas inusitadas e desconhecidas, em especial aquelas que apontavam os moradores como alienados por estarem longe dos acontecimentos da ditadura e Hilda como elitista, por morar numa casa tão grande.
– Claro, com essa casa é fácil que as pessoas gostem de você – apontou uma dessas visitas.
– Você é um chato – Hilda respondeu, e se trancou no escritório.
Os outros moradores tentaram dialogar mais um pouco, mas não conseguiram por muito tempo: acharam que Hilda tinha razão, o incógnito visitante era irritante.
Quando se viu sozinho na sala, decidiu que não ia embora. Caminhou até a figueira, pegou alguns galhos caídos no chão e os entrelaçou meticulosamente.
Mora se aproximou curioso depois de alguns minutos e viu uma figura geométrica, um octaedro perfeito.
– Nossa, que beleza!
– É... – respondeu, olhando lacrimejante para o objeto que criou – vocês me deixaram sozinho.
Já os amigos tinham dificuldade para ir embora. Sempre que anunciavam a despedida, Hilda insistia. “Fica vai, fica...”. Entravam no carro, batiam as portas e ela continuava. “Fica vai, fica...”. Resolviam descer sorridentes ao sentir o afeto que lhes era dado pela amiga e continuar a visita por mais algum tempo.
Um dos assíduos visitantes da Casa do Sol era o jornalista, escritor e artista plástico J.Toledo, então um jovem de vinte e dois anos com cabelos e barba volumosos e negros. Seus olhos ficavam atrás de óculos de armação quadrada e escura e seu pescoço era ornado por um lenço de algodão com um nó virado para o canto. Toledo participava das rodas de intelectuais da cidade, tendo como amigo o modernista Flávio de Carvalho, de quem mais tarde, escreveria a biografia. Conheceu Dante em uma exposição de arte chamada Natal na Praça, no Largo do Rosário, em Campinas. Era uma festa ecumênica, organizada pela prefeitura, em que J. Toledo apresentou um quadro que retratava um feto, simbolizando o menino Jesus, dentro de uma garrafa. A obra foi apreendida e a amizade com Dante se fortaleceu.
Quando Toledo entrou pela primeira vez na Casa, olhou para a esquerda e avistou Hilda na biblioteca. Vestia-se toda de branco, inclusive com alvas luvas. Levantou-se e estendeu a mão para cumprimentá-lo. Em sua palma, havia uma aranha imensa e peluda. Morta. Hilda examinava aquele cadáver, cada pedacinho dele. Havia colocado veneno nos cantos dos cômodos para matar os insetos. Quando criança, Hilda tinha mania de examinar os bichos pequenos, as árvores e as plantas. Era muito curiosa e muito questionadora.
Com a aranha na mão, Hilda e Toledo deram muitas risadas. Hilda deixou o bicho de lado e levou o visitante para a sala. Humor negro e uísque Bell’s. Era o início de 34 anos de amizade.
Toledo percebeu que a iluminação delicada proporcionava um ambiente intimista que muito lhe agradava. Voltou outras vezes à Casa para passar finais de semana. O que lhe incomodava era a falta de segurança do local, porque os portões ficavam a maior parte do tempo abertos e as portas, sem chaves. Em algumas manhãs, era surpreendido enquanto estava dormindo com sua namorada e a porta se abria. Hilda aparecia do outro lado para acordá-lo.
–Bom dia! – dizia a anfitriã, sorridente.
Hilda também recebia, às vezes, a visita da imprensa, não só para falar de sua obra, mas de sua experiência com a transcomunicação instrumental. Repórteres da revista eletrônica Fantástico, da Rede Globo, foram à Casa do Sol para entrevistá-la sobre o assunto. Ouviram as fitas e escolheram as dez melhores interferências, entre elas a que Hilda acreditava ser a voz de sua mãe.
Com a exibição da sua experiência na da TV, Hilda foi chamada por alguns de megalomaníaca. Ela dizia que não poderia se engrandecer com tal coisa, já que a transcomunicação lhe tomava um tempo em que poderia estar trabalhando. Foi considerada a pioneira no país nesse tipo de experimento pela revista Planeta[18]. Ela não desistia.
“Por que tanta teimosia? Porque eu acho que a morte é a única situação transcendente do homem, a problemática mais importante do homem (...) Acho que a minha criação literária e as minhas fitas coincidem num ponto: a urgência de comunicar o outro”[19]
Hilda recebeu dezenas de cartas de pessoas de todo o país interessadas no assunto. Muitas a incentivavam e trocavam informações sobre os gravadores usados na experiência. Outras se arriscavam a conhecê-la pessoalmente. Numa tarde, uma motocicleta entrou pelas convidativas porteiras da Casa do Sol. Os moradores se assustaram ao ouvir o seu ronco, que cessou próximo ao quintal. Ninguém queria recebê-lo. Mora foi o indicado.
– Pois não?
O jovem visitante tirou o capacete e perguntou com naturalidade:
– É aqui que mora a mulher que conversa com os “venusianos”?
Mora acreditou que ele estava caçoando de Hilda. Respondeu em um tom irônico:
– Não, aqui mora a mulher que fala com os mortos.
– Ah... então me desculpe – disse com seriedade.
Vestiu o capacete, deu a partida na moto e saiu à procura de alguém que se comunicasse com Vênus.





[1] MASCARO, 21 jun 1986
[2] Marca de cigarro que Hilda Hilst fumava
[3] Inéditos de Hilda Hilst e textos de Apolonio de Almeida Prado Hilst.In: CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Hilda Hilst. São Paulo: Instituto Moreira Sales n.8, out 1999. Encarte.
[4] HILST, Hilda. Quando era pequena. Correio Popular. Campinas, 19 mar 1995
[5] FRAGATA, Cláudio. Entre a Física e a Metafísica, Hilda Hilst. Globo Ciência. São Paulo, ano 6, n. 61, ago 1996 Disponível em: http://www.angelfire.com/ri/casadosol/entrevistagc.html
[6] FRAGATA, ago 1996
[7] Id. O Unicórnio – Ficções. São Paulo: Quíron, 1977 .p.300.
[8] Id., Ibid..
[9] FRAGATA, ago 1996.
[10] RIOS, Hebe; TROYA, Julyana; CHIQUETTI,Taciana. vídeo Hilda Hilst para Virgens, PUC CAMPINAS, 2000. (videodocumentário)
[11] CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999, p.30.
[12] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. v. III. São Paulo: Paulus, s/d, p.667
[13] KIERKEGAARD, Sören. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret. s/d, p.122-124
[14] Físico russo, pai da bomba soviética e dissidente soviético. Vencedor do Nobel da Paz de 1975. Fonte: Enciclopédia Larousse Cultural, nº21, Nova Cultural p 5193

[15] "Folha de S. Paulo", 2 de setembro de 1973
[16] Id.,Pequenos Discursos e um Grande – Ficções, São Paulo: Quíron, 1977.
[17] Id., Ibid., p 31,32
[18] Revista Planeta, nº103, Abril 1981 p.11
[19]RIBEIRO, 18 abr 1977.