“É preciso
ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”
Friedrich
Wilhelm Nietzsche,
filósofo alemão.
(1844 -1900)
Em 25 de
fevereiro de 1973, aconteceu um blecaute na Casa do Sol. Leu à luz amarelada das velas e temia a paixão.
Originada do latim passio, paixão significa
movimento violento, impetuoso, do ser para o que ele deseja; afeto excessivo,
amor, inclinação muito forte. Também tem como sinônimo sofrimento prolongado,
desgosto, mágoa. Sua mãe havia lhe ensinado: “Tens um inimigo? Deseja-lhe uma
paixão”. Hilda se apaixonou por um de seus personagens quando ele se tornou de
carne e osso. Foi assistir a O Verdugo,
peça de sua autoria, vencedora do Prêmio
Anchieta em 1969, dirigida por Rofran Fernandes, em abril de 1973, em São
Paulo. Encantou-se por um jovem robusto de sorriso debochado, que interpretava
um dos “Homens Coiotes”, representantes dos detentores do conhecimento.
Apelidou-o de Dionísio, em homenagem ao deus grego do vinho e da embriaguez.
Ela queria ser sua Ariana.
O deus
Dionísio inspirava as melhores poesias à sua honra. As manifestações artísticas
realizadas em sua homenagem eram consideradas sagradas porque se acreditava que
ele assistia a elas. A ausência do homem a quem Hilda apelidou com o nome do
deus, inspirou-a escrever um dos poemas de Júbilo
memória noviciado da paixão, mostra de que a força da saudade resulta em
profundos processos criativos.
“É
bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz
e vento apenas
Das
coisas do lá fora
E
sozinha supor
Que
se estivesses dentro
Essa
voz importante e esse vento
Das
ramagens de fora
Eu
jamais ouviria. Atento
Meu
ouvido escutaria
O
sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque
é melhor sonhar tua rudeza
E
sorver reconquista a cada noite
Pensando:
amanhã sim, virá.
E
o tempo de amanhã será riqueza:
A
cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma
e corpo. E o verso a cada noite
Se
fazendo de tua sábia ausência.”[1]
Ariana era a
princesa de Creta por quem Dionísio se apaixonou. Quando ela morreu, o deus do
vinho pegou uma coroa que lhe tinha oferecido e colocou-a entre as estrelas.
Nem sempre Dionísio tinha atitudes delicadas, devido à natureza dupla da
bebida, que alegra e aquece o coração dos homens, mas embebeda-os também.[2]
As iniciais do
título Júbilo memória noviciado da paixão
foram escolhidas em homenagem a outro amor de Hilda, o jornalista Julio
Mesquita Neto, então diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, de propriedade seu pai. Chamava-o em seu diário de “O Grande Silencioso”, “O Grande
Inconceptível”, porque ele não a correspondia.Sentia medo de que ele a
achasse feia e velha. Ela acreditava que não era mais o seu tempo de sentir e
que as paixões a desviavam de seu trabalho.
Apesar da escolha pela dedicação integral à
sua obra, sentia-se sozinha e tinha medo de ficar desamparada. Às vezes
sentia angústia de estar envelhecendo. Sabia que era preciso ter coragem para
enfrentar a velhice e a morte. Temia a passagem e também a sobrevida. E para
ter coragem era preciso escrever.
Dante e Hilda se divorciaram legalmente em
1980, mas ele continuou morando na Casa do Sol. Apresentou sua namorada, Iara Scheidt,
a Hilda em um jantar feito para comemorar o seu aniversário.
– Dante é um homem muito bonno. – disse a anfitriã – é meio maluquete, mas é muito bonno.
Ela achou divertido até começarem as
perguntas mais delicadas:
– Quantos homens você já fodeu?
Iara fala rápido, com o cantado sotaque
gaúcho. Nasceu em Passo Fundo, interior do Rio Grande do Sul, onde o
tradicionalismo gerava limites no modo de agir e de se expressar. Quando ia ao
baile sua mãe lhe recomendava: "Não se deixe aproveitar que homens só
querem usar e jogar fora". Iara estranhou tanta liberdade. Copos e mais
copos de uísque titilavam à sua frente. Todos estavam alcoolicamente alegres.
Achou aquela Casa escura demais. A luz indireta dos abajures e dos lustres
resultava numa iluminação que não lhe deixava confortável. Lembrava-se de que
estava em um lugar ermo, longe de tudo, no meio do mato, e isso a fazia ficar
ainda mais insegura. Não imaginava que um dia iria fazer parte da história
daquela Casa, onde morou por anos.
Hilda a incentivava a usar as mesmas roupas que ela. Iara
tornou-se adepta da moda indiana por um tempo, mas se atrapalhava com os largos
punhos das mangas dos vestidos. Não conseguia mexer nas coisas da cozinha com
eles, se atrapalhava toda. Hilda não tinha esse problema, pois não se
identificava muito com o fogão. Só sabia fritar ovos e fazer chá. A
cozinha talvez seja o lugar mais simples da casa. Espaçosa, acomoda, além dos
costumeiros geladeira, fogão e pia, um armário de madeira escura e uma despensa
cheia de prateleiras que guardam os mantimentos e panelas brilhosas de aço-inox.
É também um dos lugares mais cheios de portas da Casa: pode-se escolher quatro
passagens para entrar ou sair dali. Além de alguns
quitutes, Iara fazia massagem nas costas de Hilda e ouvia dela os poemas em
primeira mão. A escritora teve um acesso de choro quando falou do poema O Louco, do livro Amavisse.
“O louco
estendeu-se sobre a ponte/ e atravessou o instante./ estendi-me ao lado da
loucura/ porque quis ouvir o vermelho do bronze / e passar a língua sobre a
tintura espessa/ de um açoite/ um louco permitiu que eu juntasse a sua luz/ à
minha dura noite.”[3]
A loucura era
algo que a amedrontava. Havia conversado com o médico do seu pai sobre as
possibilidades de ficar esquizofrênica como Apolônio. Ele lhe explicou que
doenças mentais atingem uma geração, pulam a seguinte e vêm na outra. Hilda
teria poucas chances de ficar louca mas, se tivesse filhos, eles correriam
seriamente esse risco. Não conseguia pensar em crianças puxando a sua saia e
gritando “mãe”! Entrou em pânico. Disse a si mesma que não teria filhos
esquizofrênicos. Não se permitiria gerar uma criança.[4]
As paredes da
Casa do Sol guardam cenas maternais comoventes. Em um quadro assinado por Cid,
Maria, em um largo vestido colorido e um véu vermelho na cabeça, acomoda em seu
colo um Jesus corado, de braços finos estendidos para baixo e olhos bem
delineados. Halos dourados circundam a cabeça dos dois sobre uma paisagem azul
de flores rosa-bebê, brancas, vermelhas e laranjas. A mãe parece grandiosa e o
seu filho pequeno, fragilizado fisicamente, porém com um olhar que demonstra
força vigorosa dirigida a ela, uma Maria que deixa escapar de seu manto uma
mecha de cabelos negros. Outro retrato de tema maternal que estampa uma das
paredes da Casa é uma cena de amamentação. Na foto, uma índia nua e agachada
acomoda o filho, também nu, virado para trás em seu ombro, enquanto o seio do
outro lado fica livre para alimentar um animal silvestre de pequeno porte que
suga o seu bico. A índia auxilia-o com a mão, apoiando as patas dianteiras do
bicho em sua coxa enquanto ele se alimenta de seu leite.
Hilda
justificava a sua escolha de não ter filhos, contando um trecho de uma peça
sua, As aves da noite:
“Um estudante
pergunta ao joalheiro se ele tem filhos. O joalheiro responde: ‘Minha mulher
dizia que quando uma alma masculina entra no corpo de uma mulher, ela nunca tem
filhos’. Quem sabe se entrou uma alma masculina em mim?”[5] –
concluía.
“Ela poderia deixar cem filhos – defende um de
seus amigos, o artista plástico Egas Francisco, que a retratou em dois de seus
quadros – “Mas, deixaria cem filhos que valessem a obra dela? Gente todo mundo
faz. Quero ver fazer livros.” Egas chegaria a produzir por volta de quinhentas
obras em pinturas figurativas ou abstratas criadas com o seu autodidatismo.
Seus olhos azul-turquesa denunciam ora a cor da paz celeste, ora dos maremotos.
Egas é um homem imprevisível, doce e explosivo.
Se dirigisse
um carro, confessa que “sairia matando todo mundo”. Por isso, dependia de
caronas para visitar Hilda, uma amiga com quem se identificava. Percebia que
ela não vivia dos livros, mas os livros viviam dela, assim como ele, que
considera a pintura uma “amante tirana”. Como Hilda, também aprecia uma boa
leitura. Seu pai, o médico Francisco Benjamim de Souza Filho, tinha uma
biblioteca magnífica: “enquanto uns colecionam carros, meu pai colecionava
livros”. Egas ia à Casa do Sol para conversar com Hilda sobre seus livros
preferidos. Observou que ela procurava falar com o máximo de simplicidade e
ocultar o seu lado intelectivo com sua voz naturalmente sensual. Um “sim” ou um
“não” vindos de sua boca eram muito especiais para Egas, que a considerava uma
pessoa que fugia de todos os padrões. Quando não queria receber alguém, Hilda
não atendia. Certa vez um representante da Academia Brasileira de Letras
telefonou para a Casa do Sol e ela ordenou: “Mande à merda!”.
A Casa do Sol
impressionava Egas: as paredes, as árvores, os espaços lúdicos de fora, a luz
dúbia que se infiltrava pelos vitrais. Mas nada o impressionava tanto quanto a
própria Hilda Hilst. A voz, o olhar, o modo de ser, as reações que ela tinha
diante das pessoas, as respostas que dava, as perguntas que fazia, os dias os
quais passava de bom ou mau humor. Achava-a brilhante em tudo, “um ser humano
como todo ser humano, só que muito mais sensível”. Ele sente que os artistas
têm uma maior capacidade de sofrer e por isso, também, uma maior capacidade de
ser feliz.
“Dizem que o
Vincent Van Gogh foi infeliz”. – aponta – “Não foi. Ele produziu a maior obra
que um artista pode produzir em um espaço mínimo de tempo, essa obra de
altíssima qualidade. O que ele poderia ter feito de melhor se ele é um artista,
um pintor? Nada. Se ele casasse, tivesse uma mulher que ele amasse, tivesse
muitos filhos? Nada. Seria feliz como qualquer outra pessoa pode ser feliz. Ele
foi muito mais feliz. Ele é o Van Gogh. E ela é a Hilda Hilst.”
Egas pintou o
retrato Hilda e os cães, inspirado na
impressão que a escritora o causava. “É
aquilo que dela fica de muito forte em mim”. Três bull dogs aparecem como seus guardiões, simbolizando “os cachorros
que ela solta quando se enfurece” e também os animais que foram
verdadeiros coadjuvantes da sua vida.
Desde criança,
Hilda admirava os cães por sua fragilidade e inocência. Sentava-se no chão para
tirar fotos com um dos seus primeiros animais de estimação, um cachorro de
pêlos finos e lisos e focinho comprido. Suas orelhas curtas curvavam-se para
trás quando algo o surpreendia. Tinha um olhar de arteiro e rabo volumoso que
abanava com graciosidade. Depois dele, Hilda teria centenas de cachorros. Por
causa dessa paixão, os passeios que combinava com os amigos dificilmente davam
certo. Durante o caminho da Casa do Sol até o destino desejado, sempre
encontravam cães perdidos e abandonados. Hilda pegava-os e levava até o veterinário.
Estavam sempre muito malcuidados, com sarnas, mordidas, doenças. Listava em seu
diário os nomes daqueles que conseguia lembrar ter salvo da carrocinha.
Beleza
chamava-se Tristeza porque não tinha uma das patas. Hilda alterou o nome.
Achava-a “muito coitadinha”. Dizia que queria preservar a vida sempre. Nem
mesmo as galinhas da chácara costumavam virar caldo. Eram “batizadas”, cada uma
recebia seu nome e, às vezes, morriam de velhas. Na cozinha só entrava a carne
congelada e empacotada do supermercado, até que Dante fez uma criação de frango
branco gigante para abate.
Hilda deixou
de comer carne aos poucos. Não aceitava que os animais maltratados servissem de
cobaia ou comida. Estava cansada de ver a ganância dos humanos. Prezava a alma, a alma que, para ela, não era valorizada
pelos homens.
“Se a gente mastigasse a carne um do outro, que gosto? e
uma sopa de tornozelo? E uma sopa de pés? Por que tudo deve morrer, hein, Ehud?
Porque matam os animais, hein?/Pra gente comer. É horrível comer, não? Tudo vai
descendo pelo tubo, depois vira massa, depois vira bosta”[6]
Quando um dos
animais morria, Hilda repetia enquanto chorava:
– Dizem que enquanto o dono lembrar, a alminha deles
fica num limbo gostoso, parecido com o Paraíso.[7]
A fama de
protetora dos animais se espalhou e cachorros eram abandonados no portão da
Casa do Sol. Os moradores acordavam assustados de madrugada com o ladro dos
cães da Casa que se atracavam com os inoportunos visitantes. Por vezes,
deixavam filhotes em caixas de papelão. Esses não eram agredidos: a comunidade
canina respeitava os pequenos. Entre tantas gerações de cachorros, sempre havia
um que se destacava, como a descendência de fêmeas nomeadas de Aninhas, todas
cobertas de pêlos brancos.
Além das dezenas de cachorros, andava pela casa uma cabra
chamada Genoveva, que possuía o “saudável hábito de comer cigarros apagados e
colocar a caraça na porta do quarto de alguns incautos que faziam sexo”.[8]
Às vezes, Genoveva perambulava pela sala. Era miúda, de
pescoço cor-de-caramelo e olhar indiferente. A carinha alva era contornada em
formato de coração e o focinho cor-de-rosa. Quando entrava, logo era percebida,
pois os cascos de suas patas, em atrito com a brilhosa lajota vermelha que
revestia o chão, repercutia um ruído parecido com o de saltos de sapatos
femininos.
No final do dia, o fundo tacho de cobre que ficava ao lado
das poltronas da sala abrigava várias bitucas de cigarros, que em um momento de
distração Genoveva se pôs a mascar. Na primeira vez, Hilda olhou, abismada, o
maxilar do animal abrindo e fechando num ritmo esparramado, com medo de que se
envenenasse com a nicotina. Como toda boa cabra, adorava celulose, substância
presente na composição dos filtros de cigarros. Os fumantes tomavam cuidado
para não deixar o filtro aceso e queimar a boca dela. Diferente dos cachorros,
Genoveva não se acomodava em nenhum canto. Por isso logo saía para o quintal e
continuava a dar voltas pelos arredores da Casa, mas não se atrevia a ir ao
fundo, onde existe uma comunidade diferente da qual ela e os cães soltos
pertencem.
Saindo da sala
e atravessando o pátio interno, do lado direito existe uma porteira de madeira
fechada por uma corrente que guarda um universo de latidos e uivos: o canil. O
ranger das correntes é o primeiro sinal que os faz sentir a presença de alguém
que está por vir. Naquele momento iniciam um coro misto de choro e ladro.
Atravessando a porteira, anda-se por uma leve rampa até que se possa ver os
animais agitados e enfrentar o barulho impactante. À frente, estão presos num
espaço cimentado, cercados por grades de arame entrelaçado em formas quadradas.
Do lado esquerdo, outros estão num canil de terra, acolhidos por um frondoso
flamboyant, plantado ao fundo. As raízes agarradas à terra formam um emaranhado
exposto que traz a sensação de força.
Alguns
cachorros correm de ponta a ponta, carimbando suas patas nas paredes que
separam um canil do outro para tomar impulso e percorrer aquele vai-e-vem com
vigor, como se desejassem ser do tamanho daquele espaço todo, para poder
guardá-lo com maior exatidão. Outros se mantêm firmes, com os olhos fixos,
patas arredias e as cabeças balançantes pelo impulso do latido, enquanto uns
abanam o rabo em um gesto festivo. O certo é que nenhum deles se mantém apático
ou quieto diante de outra presença que não seja a canina. Formam ali uma
matilha que chegou a ser composta por quase oitenta membros das mais variadas
raças, tamanhos e procedências.
Os que
pertencem àquele lugar não aceitam a liberdade. O canil é o universo deles,
onde são mandantes e não os mandados, os organizadores e os desorganizadores. O
sol determina os seus horários. Quando os primeiros raios incidem imprecisos e
quando desaparecem, ladram e uivam num ritmo intenso e num tom rouco que lembra
a voz dos humanos quando se sentem emocionados frente a uma despedida ou a um
inesperado encontro.
A imagem de São Francisco de Assis,
considerado o protetor dos animais, ficava na cabeceira da cama de Hilda. O
quadro vertical retrata o santo em uma ruela de casas coloridas jogando grãos
de milho para cinco pombas brancas que os aguardam com os pescoços esticados
para cima. Ao lado da cama, o criado-mudo de madeira clara e opaca, com
puxadores de ferro preto nas gavetas, tem em cima a fotografia branca e preta
de Apolônio Hilst, com seu olhar intenso e a boca entreaberta. À frente da
cama, uma lareira de pedra, com as laterais estendidas até o teto, formando
acima duas repartições usadas como estantes para dezenas de livros. Na mesma
parede, uma janela alta, que passava a maior parte do tempo aberta. Na
madrugada do dia 28 de setembro de 1979, suas duas abas de madeira estavam
fechadas. Hilda adormecia em seu leito. Em seus sonhos, o fogo. Dois aviões, a
casa incendiada. Fogo. O oratório de Dante. Fotografias – todas destruídas.
Fogo.
O fogo
representava medo na Casa do Sol. Quando Bedecilda comprou a Fazenda São José,
plantou por volta de quarenta alqueires de capim-gordura para a pastagem.
Viam-se, então, leves colinas estendendo-se ao horizonte, pintadas por fiapos
verdes deslizantes do mato. Na época das inflorescências, a cor da paisagem
mudava para o violáceo plumoso. Na seca, a cor mais temida era o vermelho do
fogo que chegava a rodear a Casa. O incêndio começava no pasto e ia se
entendendo até os redores da construção. O capinzal alto ardia e se
esturricava. A vegetação era carpida de três a quatro metros em volta dos muros
e das cercas para que a chama não entrasse.
Uma faísca
chamada Wilson Hislt se embrenhou na Casa do
Sol, numa manhã de verão de 1979, quando aconteceu o mais enérgico incêndio de
sua história. Tinha um olhar firme. O olhar dos Hilst. Hilda
e ele tinham o mesmo sangue: eram primos de primeiro grau. Pediu para ficar,
dizendo que não tinha para onde ir. Hilda foi chamar Mora Fuentes no quarto
dele.
– Sapo, vem aqui! Chegou um primo meu, venha conhecer!
Mora se levantou e vestiu uma túnica. Seu quarto dava para
a frente do pátio interno da Casa. Quando abriu a porta, avistou do outro lado
um sujeito alto, muito magro, que o fitou. Wilson revirou os olhos. Foi a
primeira vez que eles se viam. Sentiu aversão por Mora Fuentes. Mesmo assim,
pediu para ficar. Hilda aceitou, mas não gostava do primo. Era quieto, quieto
demais.
– Como ele é chato, meu Deus! Esse primo não vai
embora nunca! – lamentava aos amigos.
Wilson era
esquizofrênico, assim como Apolônio Hilst, pai de Hilda. A doença se caracteriza
pelo humor freqüentemente depressivo e paradoxal, condutas estranhas e
alucinações de diversas naturezas[9].
Wilson dizia ser um escolhido de Deus. Mas também acreditava no demônio. “Eu converso com os dois” –
declarava. Quando chegou na Casa, não apresentava os sintomas de esquizofrenia,
mas Hilda o tratava com hostilidade. Pouco lhe dirigia a palavra. Sua atitude
mudaria no reveillon de 1980. Bebidas, risos, festa. Brinde à meia-noite. Mora
se dividiu entre a sala e a varanda, onde fica um sino. Correu, entusiasmado, a
dar as doze badaladas para anunciar o novo ano. Ia e voltava para não perder a
festa. Todos seguiam o ritmo da música no meio da sala, menos Wilson. A lâmpada
do lustre refletida no chão, formava um tapete de luz ao centro. Enquanto isso,
uma escultura de Buda com o corpo parecido com uma montanha de pedras sorri e
Joana D’arc, de rosto branco e postura masculina, segura o seu escudo montada
em um cavalo azul de olhos sobressaltados, contornados de laranja.
Depois de
alguma taças de champanhe, Hilda percebeu que o primo estava sozinho e quieto.
Tirou-o para dançar. Fogo. Entre um passo e outro, agora estavam abraçados.
Fogo. Beijos no rosto. Fogo. Do rosto para a boca. Fogo. Fogo. Fogo. Naquela
noite, aconteceu o primeiro incêndio. Ele tinha o rosto severo como o de
Apolônio Hilst. Era como se o pai, ainda jovem, voltasse para ela. Wilson tinha
menos de trinta anos. Ela, cinqüenta e um. Viu “em sua face a loucura”. E se
apaixonou por ele.
Wilson ficava angustiado porque queria possuir
Hilda Hilst. Sentia ciúmes de todos os seus amigos, principalmente de Dante e
de Mora Fuentes. Mora tinha sofrido um transplante de rim no final de 1979, por
isso, estava fragilizado. A solução foi sair da Casa do Sol por algum tempo e
ir morar em São Paulo. Hilda ficou enfurecida com a decisão.
–
Você vai me deixar aqui, sozinha com ele?!
–
Claro, é você que está namorando ele, não sou eu.
A
distância não foi a saída para acabar com a desconfiança de Wilson. Ele queria
possuir Hilda, invadir seus pensamentos e manipular seus atos.
–
Você está comigo na cama, mas está
pensando na alma do Zé. (Luis Mora Fuentes).
Hilda
sentia-se sozinha, a televisão era sua companheira. O brilho da tela escurecia
as conversas dos amigos que visitá-la. Tornou-se uma apreciadora das novelas
brasileiras. As falas dos personagens se misturavam com as dos visitantes que
iam para a cozinha dialogar. Hilda ficava furiosa porque deixavam-na sozinha.
Depois, quando os amigos chegavam no horário nobre, pedia que esperassem um
pouco para acabar de assistir à trama.
–Vou pedir a
vocês para me esperarem um pouco aqui, nesta ante-sala. É que estou vendo minha
novela na Globo.
Como se
notasse as caras perplexas, voltou-se e completou:
– Ué? Cada
tempo tem o Balzac que merece. Não perco meu folhetim.[10]
Hilda
se afastou das antigas amizades por causa do ciúme de Wilson que, devido à
doença, tinha mania de perseguição. Escrevia-lhe bilhetes alertando-a de que
existia falsidade e traição ao seu redor.
Ele permitia a
entrada na Casa apenas para Lygia Fagundes Telles, Ana Lúcia Vasconcellos, J.
Toledo e sua mulher Diane. Ela aceitava. Como dizia a sua mãe, Bedecilda, “se
tens um inimigo, deseja-lhe uma paixão”. Hilda estava tola, como toda mulher
apaixonada. Colocava discos de músicas românticas em sua vitrola de long plays portátil e sentava-se ao lado
dele, no sofá da sala. Ao lado, um abajur de pedestal alto de madeira e cúpula
em forma de cone, decorada por dois fios dourados, iluminava o ambiente.
Olhavam-se maliciosamente, enquanto as visitas permitidas perambulavam pela
casa. Os olhos de Hilda demonstravam a intenção dos seus lábios em perfeita
sincronia. Mesmo que eles estivessem fechados, existia um significado a ser
compreendido. Já o olhar de Wilson era desconfiado, direcionado ao seu redor.
Os cabelos eram na altura do queixo e tão lisos que a franja repartida ao lado
escorria em sua testa. Suas pálpebras inferiores possuíam dois riscos que se
iniciavam do canto de dentro dos olhos. Ele comia toneladas de folhas de alface
todos os dias. Folhas. Hilda achava divino. Comprou uma moto importada, deu a
ele de presente. Era piloto de avião, gostava de aventuras. Ele amava a
velocidade e ela amava a escrita. Mas Wilson dizia que ela se transformava
quando estava produzindo suas histórias. Queria que abandonasse o que tinha de
mais precioso. Não gostava de vê-la trabalhar.
–Você fica com
cara de homem quando escreve.
Hilda esperava que ele saísse para continuar a
produzir A obscena senhora D. Dizia que o amor não inspira, e sim a
paixão: “A
paixão deixa a pessoa bem louca, faz coisas impossíveis” [11]. E “a
literatura que se faz paixão tanto pode salvar como pode matar”.[12]
Ela não o satisfazia. Vivia lenta entre cartas, visitas e telefonemas. Ao
comando de sua importada motocicleta, Wilson sofreu um grave acidente. A
lataria se retorceu toda. Ele ficou dias sem se mexer. Hilda era a única pessoa
que o apoiava, que lhe dava chão.
–
Vou com ele até o fim – sentenciava aos amigos.
Dia
15 de fevereiro de 1981, Hilda teve uma febre estranha, que atribuiu a um mau
pressentimento. Tremia de frio. Um fogo interno corria-lhe pelo rosto e cabeça.
Sentia que algo de ruim estava prestes a acontecer. Na noite seguinte, bebida,
copos. Mais tarde, cacos e gritos. Hilda brigou com Wilson e, envolvida pelo
ódio, quebrou algumas coisas. Acordou às 5 horas. Ele ainda estava na sala.
Sentiu-se preocupada com o futuro, com o que poderia acontecer naquele
relacionamento explosivo. O que lhe salvava era escrever A Obscena Senhora D
– criar, ler, aprender. Wilson era um homem violento. Na cidade de Jaú, onde
morava antes de chegar à Casa do Sol, sua agressividade era conhecida. Saiu de
lá com brigas pendentes. Acreditava-se que ele participava do tráfico de drogas. Pegou um ônibus e veio para Campinas,
interessado em conhecer a prima famosa, depois de ler um de seus livros, Qadós. O título vem do grego e quer dizer “O Santo”, “O Escolhido”. Logo ele, que
se dizia o “escolhido por Deus”. No final de 1979, ficou curioso para conhecer
a prima famosa. Em setembro de 1981, tinha vontade de matá-la. Com o revólver
na mão, disse que seria um banho de sangue. Ela o desafiava.
Wilson
a aprisionou na Casa do Sol. Os empregados se retiraram foragidos. Ricardo Cameron,
o caseiro espanhol, foi trabalhar na casa de Dante. Ninguém saía e ninguém
entrava.
–
Agora você vai ficar comigo. Comigo e
com mais ninguém.
Iara
foi até a Casa do Sol. O portão permanecia aberto. Entrou na sala, estava
vazia.
–
Olá, pessoal... – disse para anunciar a sua presença.
Ninguém
apareceu. Virou à esquerda, percorreu o corredor em direção ao quarto de Hilda.
Encontrou-a sentada na cama, com a cabeça baixa e os cabelos desordenados.
Curvou-se para procurar o seu rosto e cumprimentá-la. Ao invés de beijar a sua
face, ela disse baixinho:
–
Iara, ele está sentado em cima de um revólver.
Ela
virou-se com cautela para trás. Wilson olhou-a por baixo, sentado em cima de um
baú, encostado na parede. Ela saiu do quarto sem saber ao certo como agir.
Decidiu que deveria voltar e ver o que estava acontecendo. Ele havia se
levantado. Estava com o punho fechado, pronto para descarregar a sua força no
rosto de Hilda.
–
Não!
Iara
gritou e saiu correndo. Para adquirir mais velocidade em seus passos, descalçou
as sandálias de salto que vestia. Foi até a sua casa, que ficava na rua ao
lado, telefonar para a polícia. As viaturas chegaram logo depois e aguardaram
fora da Casa do Sol enquanto ela e Dante entraram para falar com Hilda. Ela
disse que estava tudo bem e que não havia motivos para prender o seu primo.
Continuaria presa na Casa, sem poder receber visitas ou ligações de amigos como
Mora Fuentes, nome cuja mera pronúncia fazia Wilson se enfurecer. Sentia ciúmes
da afinidade entre os dois. Mora e Hilda às vezes tinham o mesmo sonho. Cada um
nos seus quartos, sonhavam com os mesmos cenários. Isso se repetiu várias
vezes. Histórias banais, mas idênticas. Certa noite, Mora sonhou com um
incêndio. Fogo. Três cavalos negros corriam os campos da fazenda São José.
Relacionou-os às bestas do Apocalipse. Fogo. As labaredas avançavam em direção
à Casa. Fogo. Acordou aflito. Telefonou para um amigo para ter notícias de
Hilda. Foi o dia em que ela tomou coragem para tentar sair da Casa.
–
Posso ler na figueira? Estou com saudades dela... – pediu a Wilson sem
esperanças de ele concordar. Mas sim, ela podia sair afinal, sim. Ele deixou.
Hilda saiu
lentamente. Andou em passos curtos e imprecisos pelo jardim. Foi plantada ali
uma alameda de coqueiros com cúpulas parecidas com penachos usados pelos
guardas da realeza, que acompanham os transeuntes do portão à porta da Casa. Ao
seu redor, diversas árvores cresciam com a finalidade de tornar aquele jardim
ainda mais secreto, frente ao emaranhado de galhos que viria a crescer, formando
inclusive uma passagem para a figueira. Todas as outras árvores pareciam
tímidas frente à sua imponente grandiosidade acolhedora e ao mesmo tempo,
tenebrosa. Hilda abrigou-se em sua sombra e depois se aproximou aos poucos do
portão. Apareceram duas pessoas. Duas mulheres do outro lado das grades, na
rua. Queriam emprestar-lhe o telefone.
–
Diga ao Dante que o Wilson quer me matar. – Hilda pediu, e explicou onde ficava
a chácara em que o ex-marido morava.
As
duas mulheres, assustadas, foram avisar. Dante ligou para a polícia. Três
automóveis da PM chegaram quando ela ainda estava no jardim. Assim que o portão
foi aberto, Hilda fugiu. Os policiais invadiram a Casa. O ex-marido entrou
junto para a revista. Quando abriu o armário do quarto de Wilson, encontrou uma
estátua de um diabo vermelho de gesso iluminado por três velas, com uma imagem
de santo negro à sua frente. A cera se derretia, escorria pelas velas e grudava
na madeira. Imaginou que aquilo poderia ter incendiado a Casa. A polícia
conseguiu capturar o primo da escritora, que estava sentado na sala, fumando.
Hilda não queria que ele fosse preso porque era doente, esquizofrênico. Mas
também muito rebelde. Cuspiu na cara do delegado, deixou todos com raiva.
Olhava por cima, com arrogância. Ficou preso por três meses até que ela
conseguiu que ele fosse internado em um sanatório espírita, às suas custas.
Wilson enviava-lhe cartas sobre seus anseios e angústias:
“Quando
eu sair de tudo isto, não sei pra onde irei, mas, com todas as forças de fé que
tenho irei reinar, pois os reis não possuem coisas, eles reinam pura e
simplesmente”.
Depois que
Wilson foi preso, Hilda estava diferente. Fechou-se para o mundo, para os
amigos. Falava pouco, mas eles compreendiam seus sentimentos e a deixavam
sozinha. Temiam que não voltasse a ser mais a mesma pessoa. Não queria entrar
na Casa do Sol, onde havia sido presa por três meses, onde Wilson fazia rituais
para o demônio. A Casa estava imunda, por falta da limpeza que era feita pelos
empregados que saíram foragidos e por terríveis lembranças que suas paredes traziam
à memória de Hilda. Ficou durante quinze dias na casa de Dante e, quando
voltou, pediu para que ele e Iara fossem morar com ela. Mora e Olga também
voltaram e ficaram por mais um ano, quando Olga ficou grávida. Hilda decidiu
que a Casa deveria mudar. O sofá de couro, destruído pelos cães, foi
substituído por uma mureta forrada por acentos macios, com as laterais mais
altas cobertas de mármore preto. Todas as paredes, de dentro e por fora foram
pintadas de cor-de-rosa. E Hilda se entregou à vida aos poucos.
Os
amigos perceberam que a tinham de volta quando decidiu terminar de escrever A obscena Senhora D. Havia produzido
pouco depois que selou o primeiro beijo com Wilson e continuou logo que as mais
ardentes e confusas páginas da história de sua vida foram escritas. Hillé, a
protagonista, é uma viúva de sessenta anos de idade que passa quase todo o
tempo no vão da escada de sua casa, onde relembra o marido morto e o pai. A
escada é um elemento que traz a idéia de verticalidade, que leva ao alto, “um veículo
de passagem deste mundo para outro”.[13]
A personagem encontra-se fora de um centro, a “ausência do centro é a angústia
diante do nada, do ser nada”.[14]
Seus vizinhos acreditam que ela seja louca, porque os assusta gritando
palavrões da janela de sua casa, com o rosto mascarado.
“Vi-me
afastada do centro de alguma coisa que não sei o nome, nem por isso irei à
sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé, também chamada por Ehud A
Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira
silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição, Ehud me
dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo,
abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te
chamo A Senhora D. D de Derrilição, ouviu?[15]”
Anos depois,
Hilda, Iara, Dante, J.Toledo e sua namorada Marcela estavam na sala quando
Wilson entrou novamente. Era por volta de uma e meia da manhã. Dante correu
para o quarto pegar seu revólver e deixou o cano à mostra, preso no elástico da
bermuda. Toledo olhou assustado, imaginando cenas de violência. Passaria aquela
noite na Casa e tinha medo do que poderia acontecer. Wilson estava abatido e
pediu licença num tom baixo. Queria um lugar para dormir. Hilda ficou pálida de
susto, mas permitiu que ele fosse até a cozinha para comer alguma coisa. Após
um consenso geral entre os moradores chegou-se à conclusão de que ele não
poderia dormir dentro da Casa. Mesmo pedindo “por favor” a todo o momento,
todos temiam seu gênio imprevisível e decidiram que passaria a noite em uma
rede da varanda. No dia seguinte partiu logo pela manhã. A última notícia que
se teve de Wilson Hilst foi de sua morte: foi assassinado em Jaú, com um tiro
na cabeça.
[1]HILST,
Hilda. Poesia: 1959-1979 São
Paulo: Quíron; Brasília: INL, 1980
[2]
HAMILTON, Edith. A mitologia. Publicações Dom Quixote, 1942. p.78-79
[3]HILST, Hilda. Amavisse. Poema IV
[4] CADERNOS
DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999,p.26.
[5] MARIA,
Cleuza. A verdade extrema de Hilda Hilst.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17 set 1982.
[6] Id. A
obscena Senhora D. São Paulo: Massao Ohno. s/d, p.18
[7] ABREU,
fev 1986
[9]
Enciclopédia Larousse Cultural. Nova Cultural vol. 9 p.2230.
[10] MORAES,
Régis. Breve elegia de um cometa.
Revista Muito +, 29 de mar 2004. p.45.
http://www.cosmo.com.br/chat/arquivo/hilda010110.shtm. Acesso em: 15/08/05
[12] Citação de José Castelo em Potlatch, a
maldição de Hilda Hilst. José Castelo. O Estado de São Paulo, 30 /10/94.
[13]
TODESCHINI, Maria Thereza. O Mito em jogo. Um estudo do romance A
Obscena Senhora D de Hilda Hilst. UFSC, Florianópolis, 1989. p.10.
[14] id. Ib. p.06
[15] HILST,. S/d.