Cap 5 - Paixões


“É preciso ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”
Friedrich Wilhelm Nietzsche, filósofo alemão.
(1844 -1900)

Em 25 de fevereiro de 1973, aconteceu um blecaute na Casa do Sol. Leu  à luz amarelada das velas e temia a paixão. Originada do latim passio, paixão significa movimento violento, impetuoso, do ser para o que ele deseja; afeto excessivo, amor, inclinação muito forte. Também tem como sinônimo sofrimento prolongado, desgosto, mágoa. Sua mãe havia lhe ensinado: “Tens um inimigo? Deseja-lhe uma paixão”. Hilda se apaixonou por um de seus personagens quando ele se tornou de carne e osso. Foi assistir a O Verdugo, peça de sua autoria, vencedora do Prêmio Anchieta em 1969, dirigida por Rofran Fernandes, em abril de 1973, em São Paulo. Encantou-se por um jovem robusto de sorriso debochado, que interpretava um dos “Homens Coiotes”, representantes dos detentores do conhecimento. Apelidou-o de Dionísio, em homenagem ao deus grego do vinho e da embriaguez. Ela queria ser sua Ariana.

O deus Dionísio inspirava as melhores poesias à sua honra. As manifestações artísticas realizadas em sua homenagem eram consideradas sagradas porque se acreditava que ele assistia a elas. A ausência do homem a quem Hilda apelidou com o nome do deus, inspirou-a escrever um dos poemas de Júbilo memória noviciado da paixão, mostra de que a força da saudade resulta em profundos processos criativos.

“É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.”[1]

Ariana era a princesa de Creta por quem Dionísio se apaixonou. Quando ela morreu, o deus do vinho pegou uma coroa que lhe tinha oferecido e colocou-a entre as estrelas. Nem sempre Dionísio tinha atitudes delicadas, devido à natureza dupla da bebida, que alegra e aquece o coração dos homens, mas embebeda-os também.[2]
As iniciais do título Júbilo memória noviciado da paixão foram escolhidas em homenagem a outro amor de Hilda, o jornalista Julio Mesquita Neto, então diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, de propriedade seu pai.  Chamava-o em seu diário de “O Grande Silencioso”, “O Grande Inconceptível”, porque ele não a correspondia.Sentia medo de que ele a achasse feia e velha. Ela acreditava que não era mais o seu tempo de sentir e que as paixões a desviavam de seu trabalho.

Apesar da escolha pela dedicação integral à sua obra, sentia-se sozinha e tinha medo de ficar desamparada. Às vezes sentia angústia de estar envelhecendo. Sabia que era preciso ter coragem para enfrentar a velhice e a morte. Temia a passagem e também a sobrevida. E para ter coragem era preciso escrever.
Dante e Hilda se divorciaram legalmente em 1980, mas ele continuou morando na Casa do Sol. Apresentou sua namorada, Iara Scheidt, a Hilda em um jantar feito para comemorar o seu aniversário.
– Dante é um homem muito bonno. – disse a anfitriã –  é meio maluquete, mas é muito bonno.
Ela achou divertido até começarem as perguntas mais delicadas:
– Quantos homens você já fodeu?
Iara fala rápido, com o cantado sotaque gaúcho. Nasceu em Passo Fundo, interior do Rio Grande do Sul, onde o tradicionalismo gerava limites no modo de agir e de se expressar. Quando ia ao baile sua mãe lhe recomendava: "Não se deixe aproveitar que homens só querem usar e jogar fora". Iara estranhou tanta liberdade. Copos e mais copos de uísque titilavam à sua frente. Todos estavam alcoolicamente alegres. Achou aquela Casa escura demais. A luz indireta dos abajures e dos lustres resultava numa iluminação que não lhe deixava confortável. Lembrava-se de que estava em um lugar ermo, longe de tudo, no meio do mato, e isso a fazia ficar ainda mais insegura. Não imaginava que um dia iria fazer parte da história daquela Casa, onde morou por anos.
Hilda a incentivava a usar as mesmas roupas que ela. Iara tornou-se adepta da moda indiana por um tempo, mas se atrapalhava com os largos punhos das mangas dos vestidos. Não conseguia mexer nas coisas da cozinha com eles, se atrapalhava toda. Hilda não tinha esse problema, pois não se identificava muito com o fogão. Só sabia fritar ovos e fazer chá. A cozinha talvez seja o lugar mais simples da casa. Espaçosa, acomoda, além dos costumeiros geladeira, fogão e pia, um armário de madeira escura e uma despensa cheia de prateleiras que guardam os mantimentos e panelas brilhosas de aço-inox. É também um dos lugares mais cheios de portas da Casa: pode-se escolher quatro passagens para entrar ou sair dali. Além de alguns quitutes, Iara fazia massagem nas costas de Hilda e ouvia dela os poemas em primeira mão. A escritora teve um acesso de choro quando falou do poema O Louco, do livro Amavisse.

“O louco estendeu-se sobre a ponte/ e atravessou o instante./ estendi-me ao lado da loucura/ porque quis ouvir o vermelho do bronze / e passar a língua sobre a tintura espessa/ de um açoite/ um louco permitiu que eu juntasse a sua luz/ à minha dura noite.”[3]

A loucura era algo que a amedrontava. Havia conversado com o médico do seu pai sobre as possibilidades de ficar esquizofrênica como Apolônio. Ele lhe explicou que doenças mentais atingem uma geração, pulam a seguinte e vêm na outra. Hilda teria poucas chances de ficar louca mas, se tivesse filhos, eles correriam seriamente esse risco. Não conseguia pensar em crianças puxando a sua saia e gritando “mãe”! Entrou em pânico. Disse a si mesma que não teria filhos esquizofrênicos. Não se permitiria gerar uma criança.[4]
As paredes da Casa do Sol guardam cenas maternais comoventes. Em um quadro assinado por Cid, Maria, em um largo vestido colorido e um véu vermelho na cabeça, acomoda em seu colo um Jesus corado, de braços finos estendidos para baixo e olhos bem delineados. Halos dourados circundam a cabeça dos dois sobre uma paisagem azul de flores rosa-bebê, brancas, vermelhas e laranjas. A mãe parece grandiosa e o seu filho pequeno, fragilizado fisicamente, porém com um olhar que demonstra força vigorosa dirigida a ela, uma Maria que deixa escapar de seu manto uma mecha de cabelos negros. Outro retrato de tema maternal que estampa uma das paredes da Casa é uma cena de amamentação. Na foto, uma índia nua e agachada acomoda o filho, também nu, virado para trás em seu ombro, enquanto o seio do outro lado fica livre para alimentar um animal silvestre de pequeno porte que suga o seu bico. A índia auxilia-o com a mão, apoiando as patas dianteiras do bicho em sua coxa enquanto ele se alimenta de seu leite.

Hilda justificava a sua escolha de não ter filhos, contando um trecho de uma peça sua, As aves da noite:
“Um estudante pergunta ao joalheiro se ele tem filhos. O joalheiro responde: ‘Minha mulher dizia que quando uma alma masculina entra no corpo de uma mulher, ela nunca tem filhos’. Quem sabe se entrou uma alma masculina em mim?”[5] – concluía.
 “Ela poderia deixar cem filhos – defende um de seus amigos, o artista plástico Egas Francisco, que a retratou em dois de seus quadros – “Mas, deixaria cem filhos que valessem a obra dela? Gente todo mundo faz. Quero ver fazer livros.” Egas chegaria a produzir por volta de quinhentas obras em pinturas figurativas ou abstratas criadas com o seu autodidatismo. Seus olhos azul-turquesa denunciam ora a cor da paz celeste, ora dos maremotos. Egas é um homem imprevisível, doce e explosivo.
Se dirigisse um carro, confessa que “sairia matando todo mundo”. Por isso, dependia de caronas para visitar Hilda, uma amiga com quem se identificava. Percebia que ela não vivia dos livros, mas os livros viviam dela, assim como ele, que considera a pintura uma “amante tirana”. Como Hilda, também aprecia uma boa leitura. Seu pai, o médico Francisco Benjamim de Souza Filho, tinha uma biblioteca magnífica: “enquanto uns colecionam carros, meu pai colecionava livros”. Egas ia à Casa do Sol para conversar com Hilda sobre seus livros preferidos. Observou que ela procurava falar com o máximo de simplicidade e ocultar o seu lado intelectivo com sua voz naturalmente sensual. Um “sim” ou um “não” vindos de sua boca eram muito especiais para Egas, que a considerava uma pessoa que fugia de todos os padrões. Quando não queria receber alguém, Hilda não atendia. Certa vez um representante da Academia Brasileira de Letras telefonou para a Casa do Sol e ela ordenou: “Mande à merda!”.
A Casa do Sol impressionava Egas: as paredes, as árvores, os espaços lúdicos de fora, a luz dúbia que se infiltrava pelos vitrais. Mas nada o impressionava tanto quanto a própria Hilda Hilst. A voz, o olhar, o modo de ser, as reações que ela tinha diante das pessoas, as respostas que dava, as perguntas que fazia, os dias os quais passava de bom ou mau humor. Achava-a brilhante em tudo, “um ser humano como todo ser humano, só que muito mais sensível”. Ele sente que os artistas têm uma maior capacidade de sofrer e por isso, também, uma maior capacidade de ser feliz.
“Dizem que o Vincent Van Gogh foi infeliz”. – aponta – “Não foi. Ele produziu a maior obra que um artista pode produzir em um espaço mínimo de tempo, essa obra de altíssima qualidade. O que ele poderia ter feito de melhor se ele é um artista, um pintor? Nada. Se ele casasse, tivesse uma mulher que ele amasse, tivesse muitos filhos? Nada. Seria feliz como qualquer outra pessoa pode ser feliz. Ele foi muito mais feliz. Ele é o Van Gogh. E ela é a Hilda Hilst.”
Egas pintou o retrato Hilda e os cães, inspirado na impressão que a escritora o causava. É aquilo que dela fica de muito forte em mim”. Três bull dogs aparecem como seus guardiões, simbolizando “os cachorros que ela solta quando se enfurece” e também os animais que  foram  verdadeiros coadjuvantes da sua vida.
Desde criança, Hilda admirava os cães por sua fragilidade e inocência. Sentava-se no chão para tirar fotos com um dos seus primeiros animais de estimação, um cachorro de pêlos finos e lisos e focinho comprido. Suas orelhas curtas curvavam-se para trás quando algo o surpreendia. Tinha um olhar de arteiro e rabo volumoso que abanava com graciosidade. Depois dele, Hilda teria centenas de cachorros. Por causa dessa paixão, os passeios que combinava com os amigos dificilmente davam certo. Durante o caminho da Casa do Sol até o destino desejado, sempre encontravam cães perdidos e abandonados. Hilda pegava-os e levava até o veterinário. Estavam sempre muito malcuidados, com sarnas, mordidas, doenças. Listava em seu diário os nomes daqueles que conseguia lembrar ter salvo da carrocinha.
Beleza chamava-se Tristeza porque não tinha uma das patas. Hilda alterou o nome. Achava-a “muito coitadinha”. Dizia que queria preservar a vida sempre. Nem mesmo as galinhas da chácara costumavam virar caldo. Eram “batizadas”, cada uma recebia seu nome e, às vezes, morriam de velhas. Na cozinha só entrava a carne congelada e empacotada do supermercado, até que Dante fez uma criação de frango branco gigante para abate.
Hilda deixou de comer carne aos poucos. Não aceitava que os animais maltratados servissem de cobaia ou comida. Estava cansada de ver a ganância dos humanos. Prezava a alma, a alma que, para ela, não era valorizada pelos homens.

“Se a gente mastigasse a carne um do outro, que gosto? e uma sopa de tornozelo? E uma sopa de pés? Por que tudo deve morrer, hein, Ehud? Porque matam os animais, hein?/Pra gente comer. É horrível comer, não? Tudo vai descendo pelo tubo, depois vira massa, depois vira bosta”[6]

Quando um dos animais morria, Hilda repetia enquanto chorava:
– Dizem que enquanto o dono lembrar, a alminha deles fica num limbo gostoso, parecido com o Paraíso.[7]
A fama de protetora dos animais se espalhou e cachorros eram abandonados no portão da Casa do Sol. Os moradores acordavam assustados de madrugada com o ladro dos cães da Casa que se atracavam com os inoportunos visitantes. Por vezes, deixavam filhotes em caixas de papelão. Esses não eram agredidos: a comunidade canina respeitava os pequenos. Entre tantas gerações de cachorros, sempre havia um que se destacava, como a descendência de fêmeas nomeadas de Aninhas, todas cobertas de pêlos brancos.
Além das dezenas de cachorros, andava pela casa uma cabra chamada Genoveva, que possuía o “saudável hábito de comer cigarros apagados e colocar a caraça na porta do quarto de alguns incautos que faziam sexo”.[8]
Às vezes, Genoveva perambulava pela sala. Era miúda, de pescoço cor-de-caramelo e olhar indiferente. A carinha alva era contornada em formato de coração e o focinho cor-de-rosa. Quando entrava, logo era percebida, pois os cascos de suas patas, em atrito com a brilhosa lajota vermelha que revestia o chão, repercutia um ruído parecido com o de saltos de sapatos femininos.
No final do dia, o fundo tacho de cobre que ficava ao lado das poltronas da sala abrigava várias bitucas de cigarros, que em um momento de distração Genoveva se pôs a mascar. Na primeira vez, Hilda olhou, abismada, o maxilar do animal abrindo e fechando num ritmo esparramado, com medo de que se envenenasse com a nicotina. Como toda boa cabra, adorava celulose, substância presente na composição dos filtros de cigarros. Os fumantes tomavam cuidado para não deixar o filtro aceso e queimar a boca dela. Diferente dos cachorros, Genoveva não se acomodava em nenhum canto. Por isso logo saía para o quintal e continuava a dar voltas pelos arredores da Casa, mas não se atrevia a ir ao fundo, onde existe uma comunidade diferente da qual ela e os cães soltos pertencem.
Saindo da sala e atravessando o pátio interno, do lado direito existe uma porteira de madeira fechada por uma corrente que guarda um universo de latidos e uivos: o canil. O ranger das correntes é o primeiro sinal que os faz sentir a presença de alguém que está por vir. Naquele momento iniciam um coro misto de choro e ladro. Atravessando a porteira, anda-se por uma leve rampa até que se possa ver os animais agitados e enfrentar o barulho impactante. À frente, estão presos num espaço cimentado, cercados por grades de arame entrelaçado em formas quadradas. Do lado esquerdo, outros estão num canil de terra, acolhidos por um frondoso flamboyant, plantado ao fundo. As raízes agarradas à terra formam um emaranhado exposto que traz a sensação de força.
Alguns cachorros correm de ponta a ponta, carimbando suas patas nas paredes que separam um canil do outro para tomar impulso e percorrer aquele vai-e-vem com vigor, como se desejassem ser do tamanho daquele espaço todo, para poder guardá-lo com maior exatidão. Outros se mantêm firmes, com os olhos fixos, patas arredias e as cabeças balançantes pelo impulso do latido, enquanto uns abanam o rabo em um gesto festivo. O certo é que nenhum deles se mantém apático ou quieto diante de outra presença que não seja a canina. Formam ali uma matilha que chegou a ser composta por quase oitenta membros das mais variadas raças, tamanhos e procedências.
Os que pertencem àquele lugar não aceitam a liberdade. O canil é o universo deles, onde são mandantes e não os mandados, os organizadores e os desorganizadores. O sol determina os seus horários. Quando os primeiros raios incidem imprecisos e quando desaparecem, ladram e uivam num ritmo intenso e num tom rouco que lembra a voz dos humanos quando se sentem emocionados frente a uma despedida ou a um inesperado encontro.
 A imagem de São Francisco de Assis, considerado o protetor dos animais, ficava na cabeceira da cama de Hilda. O quadro vertical retrata o santo em uma ruela de casas coloridas jogando grãos de milho para cinco pombas brancas que os aguardam com os pescoços esticados para cima. Ao lado da cama, o criado-mudo de madeira clara e opaca, com puxadores de ferro preto nas gavetas, tem em cima a fotografia branca e preta de Apolônio Hilst, com seu olhar intenso e a boca entreaberta. À frente da cama, uma lareira de pedra, com as laterais estendidas até o teto, formando acima duas repartições usadas como estantes para dezenas de livros. Na mesma parede, uma janela alta, que passava a maior parte do tempo aberta. Na madrugada do dia 28 de setembro de 1979, suas duas abas de madeira estavam fechadas. Hilda adormecia em seu leito. Em seus sonhos, o fogo. Dois aviões, a casa incendiada. Fogo. O oratório de Dante. Fotografias – todas destruídas. Fogo.
O fogo representava medo na Casa do Sol. Quando Bedecilda comprou a Fazenda São José, plantou por volta de quarenta alqueires de capim-gordura para a pastagem. Viam-se, então, leves colinas estendendo-se ao horizonte, pintadas por fiapos verdes deslizantes do mato. Na época das inflorescências, a cor da paisagem mudava para o violáceo plumoso. Na seca, a cor mais temida era o vermelho do fogo que chegava a rodear a Casa. O incêndio começava no pasto e ia se entendendo até os redores da construção. O capinzal alto ardia e se esturricava. A vegetação era carpida de três a quatro metros em volta dos muros e das cercas para que a chama não entrasse.


Uma faísca chamada Wilson Hislt se embrenhou na Casa do Sol, numa manhã de verão de 1979, quando aconteceu o mais enérgico incêndio de sua história.  Tinha um olhar firme. O olhar dos Hilst. Hilda e ele tinham o mesmo sangue: eram primos de primeiro grau. Pediu para ficar, dizendo que não tinha para onde ir. Hilda foi chamar Mora Fuentes no quarto dele.

– Sapo, vem aqui! Chegou um primo meu, venha conhecer!

Mora se levantou e vestiu uma túnica. Seu quarto dava para a frente do pátio interno da Casa. Quando abriu a porta, avistou do outro lado um sujeito alto, muito magro, que o fitou. Wilson revirou os olhos. Foi a primeira vez que eles se viam. Sentiu aversão por Mora Fuentes. Mesmo assim, pediu para ficar. Hilda aceitou, mas não gostava do primo. Era quieto, quieto demais.

– Como ele é chato, meu Deus! Esse primo não vai embora nunca! – lamentava aos amigos.

Wilson era esquizofrênico, assim como Apolônio Hilst, pai de Hilda. A doença se caracteriza pelo humor freqüentemente depressivo e paradoxal, condutas estranhas e alucinações de diversas naturezas[9]. Wilson dizia ser um escolhido de Deus. Mas também acreditava no demônio. “Eu converso com os dois” – declarava. Quando chegou na Casa, não apresentava os sintomas de esquizofrenia, mas Hilda o tratava com hostilidade. Pouco lhe dirigia a palavra. Sua atitude mudaria no reveillon de 1980. Bebidas, risos, festa. Brinde à meia-noite. Mora se dividiu entre a sala e a varanda, onde fica um sino. Correu, entusiasmado, a dar as doze badaladas para anunciar o novo ano. Ia e voltava para não perder a festa. Todos seguiam o ritmo da música no meio da sala, menos Wilson. A lâmpada do lustre refletida no chão, formava um tapete de luz ao centro. Enquanto isso, uma escultura de Buda com o corpo parecido com uma montanha de pedras sorri e Joana D’arc, de rosto branco e postura masculina, segura o seu escudo montada em um cavalo azul de olhos sobressaltados, contornados de laranja.
Depois de alguma taças de champanhe, Hilda percebeu que o primo estava sozinho e quieto. Tirou-o para dançar. Fogo. Entre um passo e outro, agora estavam abraçados. Fogo. Beijos no rosto. Fogo. Do rosto para a boca. Fogo. Fogo. Fogo. Naquela noite, aconteceu o primeiro incêndio. Ele tinha o rosto severo como o de Apolônio Hilst. Era como se o pai, ainda jovem, voltasse para ela. Wilson tinha menos de trinta anos. Ela, cinqüenta e um. Viu “em sua face a loucura”. E se apaixonou por ele.
 Wilson ficava angustiado porque queria possuir Hilda Hilst. Sentia ciúmes de todos os seus amigos, principalmente de Dante e de Mora Fuentes. Mora tinha sofrido um transplante de rim no final de 1979, por isso, estava fragilizado. A solução foi sair da Casa do Sol por algum tempo e ir morar em São Paulo. Hilda ficou enfurecida com a decisão.
– Você vai me deixar aqui, sozinha com ele?!
– Claro, é você que está namorando ele, não sou eu.
A distância não foi a saída para acabar com a desconfiança de Wilson. Ele queria possuir Hilda, invadir seus pensamentos e manipular seus atos.
– Você está comigo na cama, mas está pensando na alma do Zé. (Luis Mora Fuentes).
Hilda sentia-se sozinha, a televisão era sua companheira. O brilho da tela escurecia as conversas dos amigos que visitá-la. Tornou-se uma apreciadora das novelas brasileiras. As falas dos personagens se misturavam com as dos visitantes que iam para a cozinha dialogar. Hilda ficava furiosa porque deixavam-na sozinha. Depois, quando os amigos chegavam no horário nobre, pedia que esperassem um pouco para acabar de assistir à trama.
–Vou pedir a vocês para me esperarem um pouco aqui, nesta ante-sala. É que estou vendo minha novela na Globo.
Como se notasse as caras perplexas, voltou-se e completou:
– Ué? Cada tempo tem o Balzac que merece. Não perco meu folhetim.[10]

Hilda se afastou das antigas amizades por causa do ciúme de Wilson que, devido à doença, tinha mania de perseguição. Escrevia-lhe bilhetes alertando-a de que existia falsidade e traição ao seu redor.

Ele permitia a entrada na Casa apenas para Lygia Fagundes Telles, Ana Lúcia Vasconcellos, J. Toledo e sua mulher Diane. Ela aceitava. Como dizia a sua mãe, Bedecilda, “se tens um inimigo, deseja-lhe uma paixão”. Hilda estava tola, como toda mulher apaixonada. Colocava discos de músicas românticas em sua vitrola de long plays portátil e sentava-se ao lado dele, no sofá da sala. Ao lado, um abajur de pedestal alto de madeira e cúpula em forma de cone, decorada por dois fios dourados, iluminava o ambiente. Olhavam-se maliciosamente, enquanto as visitas permitidas perambulavam pela casa. Os olhos de Hilda demonstravam a intenção dos seus lábios em perfeita sincronia. Mesmo que eles estivessem fechados, existia um significado a ser compreendido. Já o olhar de Wilson era desconfiado, direcionado ao seu redor. Os cabelos eram na altura do queixo e tão lisos que a franja repartida ao lado escorria em sua testa. Suas pálpebras inferiores possuíam dois riscos que se iniciavam do canto de dentro dos olhos. Ele comia toneladas de folhas de alface todos os dias. Folhas. Hilda achava divino. Comprou uma moto importada, deu a ele de presente. Era piloto de avião, gostava de aventuras. Ele amava a velocidade e ela amava a escrita. Mas Wilson dizia que ela se transformava quando estava produzindo suas histórias. Queria que abandonasse o que tinha de mais precioso. Não gostava de vê-la trabalhar.
–Você fica com cara de homem quando escreve.
Hilda esperava que ele saísse para continuar a produzir A obscena senhora D. Dizia que o amor não inspira, e sim a paixão: “A paixão deixa a pessoa bem louca, faz coisas impossíveis” [11]. E “a literatura que se faz paixão tanto pode salvar como pode matar”.[12] Ela não o satisfazia. Vivia lenta entre cartas, visitas e telefonemas. Ao comando de sua importada motocicleta, Wilson sofreu um grave acidente. A lataria se retorceu toda. Ele ficou dias sem se mexer. Hilda era a única pessoa que o apoiava, que lhe dava chão.
– Vou com ele até o fim – sentenciava aos amigos.
Dia 15 de fevereiro de 1981, Hilda teve uma febre estranha, que atribuiu a um mau pressentimento. Tremia de frio. Um fogo interno corria-lhe pelo rosto e cabeça. Sentia que algo de ruim estava prestes a acontecer. Na noite seguinte, bebida, copos. Mais tarde, cacos e gritos. Hilda brigou com Wilson e, envolvida pelo ódio, quebrou algumas coisas. Acordou às 5 horas. Ele ainda estava na sala. Sentiu-se preocupada com o futuro, com o que poderia acontecer naquele relacionamento explosivo. O que lhe salvava era escrever A Obscena Senhora D – criar, ler, aprender. Wilson era um homem violento. Na cidade de Jaú, onde morava antes de chegar à Casa do Sol, sua agressividade era conhecida. Saiu de lá com brigas pendentes. Acreditava-se que ele participava do tráfico de drogas. Pegou um ônibus e veio para Campinas, interessado em conhecer a prima famosa, depois de ler um de seus livros, Qadós. O título vem do grego e quer dizer “O Santo”, “O Escolhido”. Logo ele, que se dizia o “escolhido por Deus”. No final de 1979, ficou curioso para conhecer a prima famosa. Em setembro de 1981, tinha vontade de matá-la. Com o revólver na mão, disse que seria um banho de sangue. Ela o desafiava.
Wilson a aprisionou na Casa do Sol. Os empregados se retiraram foragidos. Ricardo Cameron, o caseiro espanhol, foi trabalhar na casa de Dante. Ninguém saía e ninguém entrava.
– Agora você vai ficar comigo. Comigo e com mais ninguém.
Iara foi até a Casa do Sol. O portão permanecia aberto. Entrou na sala, estava vazia.
– Olá, pessoal... – disse para anunciar a sua presença.
Ninguém apareceu. Virou à esquerda, percorreu o corredor em direção ao quarto de Hilda. Encontrou-a sentada na cama, com a cabeça baixa e os cabelos desordenados. Curvou-se para procurar o seu rosto e cumprimentá-la. Ao invés de beijar a sua face, ela disse baixinho:
– Iara, ele está sentado em cima de um revólver.
Ela virou-se com cautela para trás. Wilson olhou-a por baixo, sentado em cima de um baú, encostado na parede. Ela saiu do quarto sem saber ao certo como agir. Decidiu que deveria voltar e ver o que estava acontecendo. Ele havia se levantado. Estava com o punho fechado, pronto para descarregar a sua força no rosto de Hilda.
– Não!
Iara gritou e saiu correndo. Para adquirir mais velocidade em seus passos, descalçou as sandálias de salto que vestia. Foi até a sua casa, que ficava na rua ao lado, telefonar para a polícia. As viaturas chegaram logo depois e aguardaram fora da Casa do Sol enquanto ela e Dante entraram para falar com Hilda. Ela disse que estava tudo bem e que não havia motivos para prender o seu primo. Continuaria presa na Casa, sem poder receber visitas ou ligações de amigos como Mora Fuentes, nome cuja mera pronúncia fazia Wilson se enfurecer. Sentia ciúmes da afinidade entre os dois. Mora e Hilda às vezes tinham o mesmo sonho. Cada um nos seus quartos, sonhavam com os mesmos cenários. Isso se repetiu várias vezes. Histórias banais, mas idênticas. Certa noite, Mora sonhou com um incêndio. Fogo. Três cavalos negros corriam os campos da fazenda São José. Relacionou-os às bestas do Apocalipse. Fogo. As labaredas avançavam em direção à Casa. Fogo. Acordou aflito. Telefonou para um amigo para ter notícias de Hilda. Foi o dia em que ela tomou coragem para tentar sair da Casa.
– Posso ler na figueira? Estou com saudades dela... – pediu a Wilson sem esperanças de ele concordar. Mas sim, ela podia sair afinal, sim. Ele deixou.
Hilda saiu lentamente. Andou em passos curtos e imprecisos pelo jardim. Foi plantada ali uma alameda de coqueiros com cúpulas parecidas com penachos usados pelos guardas da realeza, que acompanham os transeuntes do portão à porta da Casa. Ao seu redor, diversas árvores cresciam com a finalidade de tornar aquele jardim ainda mais secreto, frente ao emaranhado de galhos que viria a crescer, formando inclusive uma passagem para a figueira. Todas as outras árvores pareciam tímidas frente à sua imponente grandiosidade acolhedora e ao mesmo tempo, tenebrosa. Hilda abrigou-se em sua sombra e depois se aproximou aos poucos do portão. Apareceram duas pessoas. Duas mulheres do outro lado das grades, na rua. Queriam emprestar-lhe o telefone.
– Diga ao Dante que o Wilson quer me matar. – Hilda pediu, e explicou onde ficava a chácara em que o ex-marido morava.
As duas mulheres, assustadas, foram avisar. Dante ligou para a polícia. Três automóveis da PM chegaram quando ela ainda estava no jardim. Assim que o portão foi aberto, Hilda fugiu. Os policiais invadiram a Casa. O ex-marido entrou junto para a revista. Quando abriu o armário do quarto de Wilson, encontrou uma estátua de um diabo vermelho de gesso iluminado por três velas, com uma imagem de santo negro à sua frente. A cera se derretia, escorria pelas velas e grudava na madeira. Imaginou que aquilo poderia ter incendiado a Casa. A polícia conseguiu capturar o primo da escritora, que estava sentado na sala, fumando. Hilda não queria que ele fosse preso porque era doente, esquizofrênico. Mas também muito rebelde. Cuspiu na cara do delegado, deixou todos com raiva. Olhava por cima, com arrogância. Ficou preso por três meses até que ela conseguiu que ele fosse internado em um sanatório espírita, às suas custas. Wilson enviava-lhe cartas sobre seus anseios e angústias:

“Quando eu sair de tudo isto, não sei pra onde irei, mas, com todas as forças de fé que tenho irei reinar, pois os reis não possuem coisas, eles reinam pura e simplesmente”.

Depois que Wilson foi preso, Hilda estava diferente. Fechou-se para o mundo, para os amigos. Falava pouco, mas eles compreendiam seus sentimentos e a deixavam sozinha. Temiam que não voltasse a ser mais a mesma pessoa. Não queria entrar na Casa do Sol, onde havia sido presa por três meses, onde Wilson fazia rituais para o demônio. A Casa estava imunda, por falta da limpeza que era feita pelos empregados que saíram foragidos e por terríveis lembranças que suas paredes traziam à memória de Hilda. Ficou durante quinze dias na casa de Dante e, quando voltou, pediu para que ele e Iara fossem morar com ela. Mora e Olga também voltaram e ficaram por mais um ano, quando Olga ficou grávida. Hilda decidiu que a Casa deveria mudar. O sofá de couro, destruído pelos cães, foi substituído por uma mureta forrada por acentos macios, com as laterais mais altas cobertas de mármore preto. Todas as paredes, de dentro e por fora foram pintadas de cor-de-rosa. E Hilda se entregou à vida aos poucos.
Os amigos perceberam que a tinham de volta quando decidiu terminar de escrever A obscena Senhora D. Havia produzido pouco depois que selou o primeiro beijo com Wilson e continuou logo que as mais ardentes e confusas páginas da história de sua vida foram escritas. Hillé, a protagonista, é uma viúva de sessenta anos de idade que passa quase todo o tempo no vão da escada de sua casa, onde relembra o marido morto e o pai. A escada é um elemento que traz a idéia de verticalidade, que leva ao alto, “um veículo de passagem deste mundo para outro”.[13] A personagem encontra-se fora de um centro, a “ausência do centro é a angústia diante do nada, do ser nada”.[14] Seus vizinhos acreditam que ela seja louca, porque os assusta gritando palavrões da janela de sua casa, com o rosto mascarado.

“Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei o nome, nem por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé, também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição, Ehud me dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrilição, ouviu?[15]

Anos depois, Hilda, Iara, Dante, J.Toledo e sua namorada Marcela estavam na sala quando Wilson entrou novamente. Era por volta de uma e meia da manhã. Dante correu para o quarto pegar seu revólver e deixou o cano à mostra, preso no elástico da bermuda. Toledo olhou assustado, imaginando cenas de violência. Passaria aquela noite na Casa e tinha medo do que poderia acontecer. Wilson estava abatido e pediu licença num tom baixo. Queria um lugar para dormir. Hilda ficou pálida de susto, mas permitiu que ele fosse até a cozinha para comer alguma coisa. Após um consenso geral entre os moradores chegou-se à conclusão de que ele não poderia dormir dentro da Casa. Mesmo pedindo “por favor” a todo o momento, todos temiam seu gênio imprevisível e decidiram que passaria a noite em uma rede da varanda. No dia seguinte partiu logo pela manhã. A última notícia que se teve de Wilson Hilst foi de sua morte: foi assassinado em Jaú, com um tiro na cabeça.


 

       



[1]HILST, Hilda.  Poesia: 1959-1979 São Paulo: Quíron; Brasília: INL, 1980
[2] HAMILTON, Edith. A mitologia. Publicações Dom Quixote, 1942. p.78-79
[3]HILST, Hilda. Amavisse. Poema IV

[4] CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA, out 1999,p.26.
[5] MARIA, Cleuza. A verdade extrema de Hilda Hilst. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 17 set 1982.
[6] Id. A obscena Senhora D. São Paulo: Massao Ohno. s/d, p.18
[7] ABREU, fev 1986
[8] J Toledo por e-mail .Algumas coisas que me lembro dela.
[9] Enciclopédia Larousse Cultural. Nova Cultural vol. 9 p.2230.
[10] MORAES, Régis. Breve elegia de um cometa. Revista Muito +, 29 de mar 2004. p.45.
[11] COSMO On Line .Chat com a escritora Hilda Hilst Disponível em:
[12]  Citação de José Castelo em Potlatch, a maldição de Hilda Hilst. José Castelo. O Estado de São Paulo, 30 /10/94.
[13] TODESCHINI, Maria Thereza. O Mito em jogo. Um estudo do romance A Obscena Senhora D de Hilda Hilst. UFSC, Florianópolis, 1989. p.10.
[14] id. Ib. p.06
[15] HILST,. S/d.